Antes de ir direto ao assunto faço uma pergunta ao leitor: Um DJ (dee-jay, disc jockey), aquele sujeito que opera/manipula toca-discos, pode ser considerado um músico por excelência? Depende: se a sua concepção de música estiver atrelada APENAS ao modelo-padrão clássico -- onde músico é aquele artista, dito instrumentista ou cantor, que estuda canto vocal ou um convencional instrumento dito musical e todas suas técnicas pré-determinadas por movimentos e escolas artísticas históricas, aquele que lê uma partitura de notação musical e se baseia em obras escritas/compostas previamente por ele mesmo ou por compositores terceiros --, talvez você não considere que um DJ como Christian Marclay possa figurar nas categoria de "músico"ou "improvisador" -- aliás, já salientando: a idéia aqui não é rebater o gosto e a concepção pessoal de ninguém, mas apresentar novas formas de arte musical para quem estiver interessado em sair daquela velha redoma (de padrões, convenções, imposições, falta de opções e etc) na qual as escolas clássicas, a grande mídia e o próprio sistema socio-econômico-político-cultural nos aprisionam. Mas para quem enxerga a música como uma arte em evolução e como uma arte que tem mesma capacidade de se expandir para diferentes direções da mesma forma como as artes plásticas já demonstraram e continuam demonstrando -- aliás, o jazz e a música erudita moderna do século XX já demonstraram isso --, para esta pessoa existe a necessidade de se atualizar e de se submeter ao processo de fruição artística no que diz respeito à apreciação das várias vertentes da música contemporânea, algo que acaba ficando fácil e até prazeroso, por mais impactante, complexo e/ou ruidoso que uma peça deste naipe venha lhe soar -- artistas como Ornette Coleman, Sun Ra, Frank Zappa, John Zorn e Christian Marclay, dentre tantos outros de artistas vanguardistas, são pra pessoas com este campo amplo de visão.
A propósito, falando-se em atrelar a música à mesma visão com a qual enxergamos todo o espectro das artes plásticas, é preciso salientar que, antes de mais nada, Christian Marclay é artista plástico, performer e artista de audiovisual: suas instigantes sinestesias entre sons, vídeos, colagens e instalações refletem seu posicionamento um tanto independente dentro da arte pós-moderna, ainda que no conjunto da sua obra é possível enxergar um mix de influências trançadas oriundas de movimentos como o dadaísmo, o punk rock, a pop art, o movimento Fluxus, a improvisação livre, o noise e obras de idealistas como John Cage e Marcel Duchamp -- sua arte se baseia, sobretudo, em reutilizar, objetos e materiais já concebidos, que vão desde imagens recortadas de filmes e gibis até discos de vinil que ele adquire nos sebos e brechós por onde passa. Segundo a revista Newsweek, Christian Marclay é um dos dez artistas mais influentes dos últimos tempos. Em 2011 o artista ganhou um Globo de Ouro na Bienal de Arte de Veneza pela exibição do vídeo "The Clock", um filme experimental baseado na temática do relógio e editado através de recortes de vários outros filmes hollywoodianos e europeus. Antes, o artista já tinha produzido o interessante vídeo de colagens "Telephone" (1995), que até chegou a ser plagiado recentemente por marketeiros da Apple num comercial para promover o iPhone: "Quando pessoas com muito dinheiro e poder decidem copiar suas idéias, não há muito o que fazer" -- disse Christian Marclay, que acabou desistindo de processar a empresa.
Sobre a questão se um DJ poderia ser considerado um músico ou não, Christian Marclay prova que sim: ele mesmo é o principal pioneiro e expoente do uso extendido dos toca-discos dentro do espectro da música de vanguarda -- não à toa, o famoso crítico de jazz Thom Jurek chegou a dizer que ele podia muito bem ser considerado o fundador da arte do "turntablism", ou seja, do uso técnico dos toca-discos para compor música inédita em tempo real. Precursores que fizeram experimentos com toca-discos já existiam desde as décadas de 30 e 40, quando compositores eruditos modernos começaram a explorar os ruídos produzidos pelos primeiros aparelhos eletrônicos, usando ondas de rádio, efeitos de gramofone (os antigos toca-discos da época) e os primeiros sintetizadores dentro das suas composições: a peça Imaginary Landscape No. 1 -- composta em 1939 por John Cage para dois toca discos, frequências de rádio, piano e pratos -- é uma das precursoras neste âmbito. Mas só a partir do advento do hip hop, já na década de 70 -- quando os DJ's começaram a usar técnicas como o remix (modificações sobre músicas alheias: com o uso de discos de jazz e funk da época) e o scratch (efeitos sonoros produzidos para modificar as músicas, ao mover rapidamente o disco para trás com as mãos) -- é que se pode falar em toca-discos como um instrumento independente, com técnicas próprias, como um instrumento solo capaz de produzir composições e improvisações em tempo real. Portanto, a declaração de Thom Jurek, de que Marclay pode ser considerado o fundador do turntablism, remete-se ao fato de que já é desde o início do advento do DJ, independente tal como conhecemos hoje, que este performer -- influenciado tanto pelas artes plásticas, como pelos precursores eruditos, bem como pelos desenvolvimentos iniciais do hip hop na década de 70 -- vem explorando a técnica de colagem musical e improvisações livres com toca-discos, produzindo uma arte inédita, instigante e inovadora -- isto é, Marclay começou a transformar o conceito de DJ na mesma época em que ele acabara de surgir.
Christian Marclay nunca chegou a ingressar no estudo musical, propriamente dito: seu encontro com a música deu-se na condição de artista plástico e performer ligado ao audiovisual. Nascido em 1955 na Califórnia e criado em Genebra, na Suiça, ele só voltou aos EUA em 1977. Entre 1975 e 77 Marclay estudou na Ecole Supérieure d'Art Visuel, em Genebra. Já nos EUA, em 1977 ele ingressa na Massachusetts College of Art em Boston e, no ano seguinte, passa a frequentar o cenário artístico de Nova Iorque através das aulas avançadas na rigorosa Cooper Union. À época, ele estava pesquisando trabalhos de dois grandes pioneiros dos chamados happenings e instalações audiovisuais: o alemão Joseph Beuys, um dos expoentes do movimento Fluxus, e o norte-americano Dan Graham. No que diz respeito à música, o punk rock foi a primeira manifestação com a qual se envolveu, sendo muito importante para o seu desenvolvimento inicial. Para Marclay havia uma conexão muito forte entre os performancers da época com o movimento punk rock, não apenas porque o punk rock era a música preferida da galera mais adepta às novas vanguardas nas escolas de arte, mas por causa do aspecto físico e performático das bandas do gênero, a energia bruta delas e, principalmente, porque tratava-se de um gênero onde quase todos os músicos desprezava os padrões e o rigor das técnicas musicais já convencionadas, submetendo-se ao risco de criar algo espontâneo, sujo, feio, sem muitas maquiagens estéticas ou elaborações, algo verdadeiramente espontâneo, como bem era o caráter os happenings. Em 1979, Marclay teve a idéia de produzir um filme experimental, um curta metragem explorando recortes de imagens ao som de uma trilha original: como não era músico, ele compunha as músicas da trilha cantando-as e gravando-as em fitas K7; ele também chegou a contratar um guitarrista chamado Kurt Henry para lhe dar suporte. Sem dinheiro para contratar ou formar uma banda inteira com contrabaixista e baterista, Marclay começou a utilizar os toca-discos para produzir rítmos de acompanhamento, a exemplo de como os DJs do hip hop começaram a fazer na época -- mas tudo isso à sua maneira. Estes duos com Kurt Henry, a princípio gravados em fitas K7, podem ser considerados os primeiros registros onde um DJ improvisa em tempo real em interação com outro instrumento musical. Logo em seguida, Marclay deixou as gravações em fitas K7 ao perceber que seria muito mais performático utilizar os tocas-discos no palco, mostrar uma improvisação musical através da manipulação dos discos de vinil em tempo real. Pronto: nascia, alí, o primeiro DJ especializado em improvisação livre e na arte do noise. As performances de Marclay acabaram chamando a atenção de músicos vanguardistas como David Moss e John Zorn: não à toa, em 1982 John Zorn o convidaria para participar do seu projeto "Cobra", onde as composições eram elaboradas através de jogos aleatórios, as suas chamadas "game pieces"; em seguida, ele participaria do grande álbum The Big Gundown: John Zorn Plays the Music of Ennio Morricone (Tzadik, 1985), um dos melhores registros dos anos 80 e, atualmente, considerado um clássico da música pós-moderna. Através de Zorn, Marclay foi apresentado à uma leva de grandes improvisadores, com os quais se apresentaria e gravaria eventualmente: William Hooker, Elliott Sharp, Otomo Yoshihide, Butch Morris, Shelley Hirsch, Flo Kaufmann, Arto Lindsay, Fred Frith e Thurston Moore, da banda Sonic Youth (com a qual também colaboraria). A partir daí, através das suas performances solos ou como "sideman", Christian Marclay criaria uma identidade extraordinária -- uma concepção totalmente diferente de como os toca-discos eram e são usados no hip hop, diga-se de passagem --, fazendo da técnica da amostragem e da improvisação livre os principais elementos da sua obra. Abaixo uma demonstração em vídeo:
Performance e Entrevista com Christian Marclay (Roullete TV) -- 29 minutos...
Atualmente há uma tribo considerável de fetichistas pelos álbuns de vinis. Mas já no início da década de 90, Christian Marclay começou a sofrer com a massificação do CD, pois as pessoas passaram a se desinteressar pelo vinil. Contudo, se por um lado sua agenda de performances deu uma esvaziada, por outro lado sua arte começou a ser analisada por muitos críticos, pesquisadores, e procurada por muitos jovens DJs: ou seja, tratava-se ainda de uma expressão artística nova, e essa nova cultura de artistas performáticos ligados aos toca-discos acabou recebendo o termo categórico de "Turntablism", através de afirmações do DJ filipino-americano Melvin Babu. Além disso, as experiências sonoras de Marclay ficaram registradas em uma pá de gravações que ele realizou em parceria com outros DJs e músicos, o que facilitou o reconhecimento da mídia especializada em prol da sua arte. Para quem quer explorar a discografia de Christian Marclay, indico aqui pelo menos cinco opções de álbuns os quais consegui encontrar na internet -- e para quem aprecia música contemporânea e gosta de ter o material em mãos, não sai caro comprar, on line, um ou dois CDs do artista. Um deles, chamado Records 1981-1989, é uma compilação de gravações caseiras com toca-discos e outros instrumentos adaptados -- neste álbum há até uma gravação que Marclay realizou no programa de televisão apresentado pelo saxofonista David Sanborn, o Night Music. Outro deles que é essencial e muito divertido -- talvez o mais apropriado para ouvintes iniciantes no âmbito do noise e do chamado "turntablism" -- é o More Encores (1988): neste álbum, Marclay trabalha na manipulação de discos de uma variedades de músicos de vários estilos musicais como Chopin, Louis Armstrong, Serge Gainsbourg, Maria Callas, John Zorn, Fred Frith, Johann Strauss, Martin Denny, John Cage e etc. Muito interessante também é o álbum Moving Parts (2000), onde Marclay junta-se ao guitarrista Otomo Yoshihide, o qual deixa a guitarra de lado para atuar também com toca-discos e materiais de bricolage: embora Yoshihide seja um dos músicos mais extremos do noise japonês -- e também ligado à vanguarda americana e a livre improvisação européia num âmbito energicamente ruidoso -- este álbum chega a ser até atmosférico e belo em alguns momentos. Ainda neste âmbito de dueto, cheguei a ouvir o Live Improvisations (1994), que, para mim, é um dos registros mais brilhantes de Marclay: trata-se de um duo com o percussionista/baterista e manipulador de eletrônicos alemão Günter Müller, onde eles também desfiguram trechos de músicas conhecidas: há um trecho relacionado a Bert Kamephert Singers & Orchestra, temas bonitos como "A Bela e a Fera", e eles usam até as sonoridades dos tiros dos filmes de faroeste de John Wayne. Por fim, um outro registro que achei muito interessante -- talvez mais pelo processo, a forma como foi concebido -- foi o Graffiti Compositions (2010). Convidado em 1996 para executar suas intalações no Sonambiente: Festival für Hören und Sehen, na Alemanha, Marclay distribuiu pela cidade de Berlim 5.000 folhas de pauta em branco por toda a cidade: nelas, o público era convidado a preencher as pautas com notas de música, palavras, graffiti, ou qualquer notação idiossincrática, de acordo a bagagem cultural de cada pessoa. Esses cartazes foram reunidos e, ao longo do tempo, o material foi selecionado e evoluiu para um álbum de "composições", sobre o qual Marclay disse que o real objetivo era criar uma "composição musical relacionado toda a cidade", enfatizando a espontaneidade, o acaso, e efemeridade das pessoas. Em 2002, Marclay expôs 150 fotografias deste projeto na galeria Paula Cooper Gallery, em Nova Iorque. Como ele até hoje não sabe ler partitura, seu afeto, ao expor este material, estava ligado mais ao aspecto visual das folhas. Contudo, em 2006 o compositor e multiinstrumentista Elliott Sharp foi convidado a selecionar alguns escritos desta coleção de folhas pautadas para serem executadas por um conjunto de guitarristas em uma performance no MoMa (Museum of Modern Art) em Nova York: os guitarristas escolhidos para o desafio foram Lee Ranaldo (do Sonic Youth), Vernon Reid (do Living Colour), Melvin Gibbs e a proeminente guitarrista de jazz contemporâneo Mary Halvorson. O álbum Graffiti Compositions só foi lançado em 2010 pelo pequeno selo W Dog / A Bone, mas pode ser comprado com facilidade através do site CD Universe. Ademais, se alguem conhece Christian Marclay e quer indicar mais títulos, fiquem à vontade para fazê-lo na sessão de comentários. Neste post, não precisa clicar sobre as imagens, pois eu não veiculei nenhuma fonte através delas: utilize o Bing, o Google e outros sites de busca. Caso queira comprar registros de Christian Marclay deixo os links dos seguintes sites: Amazon e CD Universe. Ademais, igualmente interessantes são as colagens que o artista produz objetos como capaz de álbuns de vinil, fitas cassetes e etc: neste post, distribuí alguns exemplos para vossa apreciação. É isso aí: não tenha medo e faça uma boa viagem pelo universo de Christian Marclay!
Christian Marclay (Contemporary Art Museum - University of South Florida)
GS-1502-3
Cassette Grid No. 3, 2008
22 1/2” x 30”
Unique Cyanotype
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