A maioria das pessoas -- em se tratando de Brasil, principalmente -- procuram ouvir apenas as modinhas dançantes e tendenciosas que a mídia lhes joga aos ouvidos; e mesmo quando algumas essas pessoas atingem uma certa "maturidade", elas até podem procurar algo mais "sofisticado" para ouvir, mas a escolha será sempre apreciar um tipo de música que não lhes apresentem desafios auditivos: ou seja, se o cara começa a gostar de jazz, dificilmente ele vai avançar sua apreciação pra fora daquele swing manjado ou daquele melodismo convencional, procurando ouvir apenas estilos do jazz tradicional ou, quando muito, estilos que apresente uma certa associação com o pop e com o rock que ele conhece, já que, assim, o jazz acaba se tornando mais palatável. Mas a influência do pop e do rock no jazz, apesar de ser legítima, é apenas uma fração das possibilidades que o jazz contemporâneo nos apresenta: há muitas aventuras que, com um pouco de coragem e desapego às "dicas" da mídia, qualquer pessoa acaba sendo capaz de assimilá-las. Mas a função desse texto não é desqualificar a música pop, e muito menos esnobar o apreciador iniciante ou médio, mas avisá-lo de como o jazz evoluiu independente das tendências passageiras, alcançando um grau de ecleticidade que nos presenteia com novas formas e com novas misturas -- esse texto, inclusive, até engloba o pop como um dos principais elementos influenciadores para o novo jazz, mas dá exemplos nada populares de como, e por que, os jazzistas usam tais elementos.
Jazz: uma palavra contraditória em sua própria origem, mas denominante de um gênero musical cosmopolita -- e também contraditório em suas próprias esferas --, gênero esse que combina arte com cultura popular como nenhum outro gênero consegue fazê-lo -- embora sempre houve, num primeiro momento, conflitos entre a sua necessidade de ser arte plena e a sua necessidade de se manter antenado com a cultura popular, para só depois haver uma confluência de elementos de ambos os extremos, sendo esse o real processo da evolução jazzística. Numa era de misturas em que vivemos, o conceito de "vanguardismo" entrou em desuso para dar lugar ao "ecletismo", onde a meta de cada artista é impor seu próprio estilo sem se preocupar com rótulos, com padrões ou com estéticas dantes estabelecidas: no campo estrito do jazz contemporâneo, além do uso de elementos do hip hop, do indie rock e da pop music, estilos e estéticas jazzísticas convencionais como o bebop, o post bop e o free jazz, transformaram-se de subgêneros vigentes de uma época antepassada para alguns dos muitos elementos que os músicos usam para compor seus temas -- daí, pelo fato de estarmos em uma época onde todas as grandes descobertas antepassadas são usadas como mero elementos em "colagens" contemporâneas, a palavra "vanguarda" acabou por perder seu sentido de progressividade. Ora, o que significa ser vanguarda hoje em dia? Por outro lado, se o jazz nunca foi tão eclético e livre como agora -- fenômeno que atinge todas as áreas das artes --, o tradicionalismo ainda tem exercido um fórceps contrário aos avanços naturais da nossa época, onde as estéticas urbanas do pop, neo-soul e hip hop passaram a ser as principais influências para os jazzistas, do mesmo modo como o blues, o gospel e a soul music foram os principais influenciadores do hard bop, estilo da década de 50 que resgatou a cadência do swing baseada na cultura negra vigente. Isto é, da mesma forma que a soul music foi a gênese principal do jazz nos anos 50, a pop music é a gênese principal do jazz nesse início de século 21: o desafio, porém, é usar essa influência sem que o resultado soe artificial e por demais sintético.
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Então, o que se quer dizer é que o jazz e a música instrumental brasileira dependem muito menos das tendências do mercado para sobreviver do que outros tipos de musicas populares dependem dele. Aliás, o próprio fato do jazz atual estar sendo influenciado pela pop music não quer dizer que o jazz esteja se tornando "pop" ou uma música mais palatável, esteticamente e comercialmente falando. Ao contrário de quando Miles Davis e Herbie Hancock aderiram ao pop, os músicos contemporâneos procuram manter a autenticidade jazzística através da complexidade dos arranjos, da quantidade de improvisos e de uma harmonia bem trabalhada. E aí temos dois casos distintos de como os músicos fizeram concessões ao mercado na intenção de renovar e/ou aumentar seus públicos: no início da década de 80, o trompetista Miles Davis, ao tocar temas de Michael Jackson, Cindy Lauper e Prince, pregou a própria morte do jazz e aderiu ao pop em sua forma mais sintética e plena; já os pianistas Brad Mehldau e Jason Moran, expoentes do jazz contemporâneo, revitalizaram o gênero sem renegar que fosse preciso manter um certo sentido de autenticidade e complexidade, reforçando a vivacidade do instrumental acústico através da configuração de covers de bandas e músicos do pop-rock tais como Nick Drake, Radiohead, Oasis e Bjork. Portanto, o fato do jazz contemporâneo estar sendo influenciado pelo hip hop e pela nova pop music está mais ligado à uma necessidade de se rejuvenescer através do uso de novos elementos do que à necessidade se tornar mais palatável ou vendável. Isso porque as próprias consequências da geração dos "young lions" já haviam garantido sobrevida ao jazz, consequências essas que geraram grandes resultados sociais e culturais: o grande feito daqueles músicos foi resgatar a importância do jazz e renovar seu público durante os anos 80 e 90 sem terem aderido à tendência da música pop, o que também possibilitou para que esse gênero musical fosse institucionalizado, tornando-se disciplina de base nas escolas e nas universidades. Em paralelo ao resgate da importância da tradição, outros fatores que garantiram sobrevida ao jazz -- principalmente no quesito dele voltar a ser sinônimo de música criativa -- foram as transformações ocorridas nos "guetos" e nos cenários underground, onde músicos da estética "M-Base" como os saxofonistas Steve Coleman e Greg Osby , bem como músicos da estética do chamado "modern creative" como o tecladista Uri Caine, o trompetista Dave Douglas e o contrabaixista Ben Allison passaram a inovar o jazz em suas diversas esferas, a princípio sem a garantia de um público e sem o respaldo total da grande mídia e , portanto, sem a garantia de um lucro comercial considerável. Por sua vez, a música pop, assim como o hip hop ja vinha influenciando alguns músicos desde o final dos anos 80, passaria a ser uma das grandes influências para todo o jazz no final dos anos 90, mas agora isso não significava que, como Miles fizera, o jazz voltaria a renegar suas origens e sua autenticidade para se tornar uma música meramente de teor comercial: o desafio do jazzista contemporâneo é usar elementos adversos mantendo a tessitura jazzística, mantendo o improviso complexo, mantendo a harmonia bem trabalhada e, principalmente, fazendo do arranjo a melhor ferramenta de trabalho . Assim como o pianista Brad Mehldau está fazendo e como o falecido pianista sueco Esbjorn Svensson vinha fazendo, o contrabaixista Ben Allison e o saxofonista Donny McCaslin, ambos americanos, têm apresentado álbuns de frescor contemporâneo onde a pop music exerce uma influência preponderante, mas, ao contrário do pianista sueco, isso não significou que eles se tornassem mais vendáveis ou que deixassem de ser subestimados pelo grande público e pela grande mídia: nos respectivos álbuns "Think Free" e "Declaration", ambos de 2009, Allison e McCaslin fizeram muito mais do que apenas interpretar covers; eles mesmos compuseram todas as canções usando elementos tonais, melódicos e timbrísticos do pop, sem diminuir na complexidade dos arranjos, da harmonia e improvisos, criando temas tão peculiares e criativos que afasta qualquer possibilidade de um especialista classificá-los como "pop" -- o melodismo, bem como alguns dos elementos harmônicos e ritmicos, advém, sim, do pop, mas o resultado final é eminentemente jazz em sua total plenitude contemporânea. Da mesma forma, o fato de músicos como o pianista Robert Glasper e o trompetista Christian Scott estarem impondo um novo estilo através das influências do neo-soul e hip hop, não significa, necessariamente, que o jazz esteja mais palatável. O que esses novos músicos estão fazendo é atualizar o jazz, após uma onda de conscientização estabelecida pela geração de Wynton Marsalis e que já estava ficando exaurida desde o final da década de 90: e a única consciência advinda dessa geração anterior é que, independente das influências, o jazz sempre terá de preservar sua autenticidade.
Dentro desse processo, porém, foi subtraída a idéia de que o jazz deva seguir padrões de swing ou grooves estabelecidos nas décadas de 40, 50 ou 60, ou ainda que o jazz deva seguir a harmonia ou o melodismo da música popular tradicional -- o próprio conceito do M-Base, criado por Steve Coleman nos anos 80, já unia elementos do free jazz, funk, bebop e hip hop numa só estética -- através do uso da polirritmia e de compassos ímpares e compostos --, prevendo a extinção de tais convenções da forma "quadradinha" como elas existiam antes. Concluindo: uma coisa é compor algo que seja palatável e vendável -- em todos os sentidos de "vender" um produto ou uma idéia --, outra coisa é sentir a necessidade de compor algo que evidencie um processo artistico, uma busca por inovação, um experimento -- situação essa, onde uma nova idéia, na maioria das vezes, não é bem aceita pelo público e crítica, e outras vezes nem é divulgada, mas que faz parte de uma necessidade de fazer com que a arte continue evoluindo: e o M-Base, por exemplo, é uma estética que não só surgiu desconectada das tendências de mercado como ainda parece continuar marginalizada, embora vários músicos da nova geração, como o pianista Vijay Iyer e o saxofonista Rudresh Mahantappa, são eminentemente influenciados por essa concepção, o que já mostra que ela será uma das estéticas a serem bem analisadas num futuro próximo. Em relação ao jazz contemporâneo, portanto, é preciso que os criticos, músicos, divulgadores e apreciadores brasileiros se atualizem e aceitem o fato de que já não existe uma concepção imposta de swing, mas um novo jazz repleto de novas formas e misturas a serem descoberta e analisadas: mas esse é um recado que só será diluído por aqueles que querem se manter atualizados. Afinal, essa coisa de "swing quadradinho" já começara ser questionada mesmo no final da década de 50, quando Dave Brubeck, a começar pelo fenomenal álbum Time Out, começou a evidenciar um jazz literalmente ímpar, onde compassos ímpares inusuais como 5/4, 7/4 e 9/8 começaram a confundir as mentes metrificadas da época. E, como já foi citado, dizem que o Dave Brubeck fez uso de um melodismo palatável e de apelos populares para vender seu milhão de discos. O problema é que, durante os momentos mais populares do jazz até os dias de hoje, nem todo músico conseguiu ser uma espécie de Dave Brubeck... (Clique nas imagens para acessar nossos podcasts e nossos artigos em português sobre os respectivos músicos).
3 comentários:
Ótimo trabalho! Me arrisco a dizer que este é o melhor artigo, que já li, sobre os dilemas do jazz no contemporâneo.
Bom, a minha opinião é que a tal imagem "nublada", que dificulta uma delimitação das fronteiras do que é ou não jazz, sempre existirá. Afinal, o jazz nasceu através da fusão de diferentes influências. Ou seja, essa mistura está no seu DNA, e é algo que cresceu ainda mais com a diminuição das distâncias entre povos, impulsionada pelo avanço tecnológico. Se misturou no começo do século XX, por que não pode misturar agora?
É ainda interessante notar que o jazz caminha paralelamente com os dilemas do Homem no contemporâneo. Há uma crise de identidade e velhos estereótipos vão sendo quebrados, afinal, hoje há comunistas cristãos, padres roqueiros, metaleiros evangélicos e otakus brasileiros com 40 anos.
Abraços,
Albino Junior
Belo comentário Albino. Você explicitou, de forma bem sucinta, um entendimento perfeito ao traçar um paralelo entre os dilemas do jazz e os dilemas do homem contemporâneo.
Abraços, muita paz e muito jazz!
Excelente artigo!
Pontuou muito bem essa confusão que às vezes é feita com relação ao ecletismo e à vanguarda, que são coisas distintas e quase sempre colocadas no mesmo balaio.
Toco num grupo instrumental (quiser conferir: myspace.com/otistrio)e me identifiquei muito com relação ao que escreveu sobre o pop. Eu sou o mais velho do trio e negar essa manifestação musical seria negar algo que está inerente a mim. Seria forçar a barra. Assim como é forçar a barra "impôr" o pop de maneira apelativa, visando somente os dividendos. Acho que o grande lance é fazer sua música, sem ranços ou "verdades". Bom, falar é fácil né... rs
Abraço.
Luiz E. Galvão
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