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Podcast: Blood on the Fields, de Wynton Marsalis, a primeira obra de jazz a ganhar um Pulitzer!


Muitos críticos e apreciadores têm reservas contra o trompetista Wynton Marsalis, apesar dele ser um músico já com status de “lenda viva”, tendo estabelecido um grande rol de fãs em todo o mundo. Sim, ele tem idéias e posições contraditórias e incoerentes, que vão na contramão das tendências mercadológicas e de  qualquer espécie de vanguardismo que já quis se instaurar no jazz: eu mesmo, não concordo com o fato dele desclassificar certos aspectos do avant-garde e a influência do hip hop e do pop no jazz contemporâneo – há muita coisa a considerar, há muitos trabalhos inovadores que fizeram ou fazem uso de tais elementos para impor novas facetas. Mas, independente de um determinado músico ter seus próprios preconceitos, aquela coisa preconceituosa de “a primeira impressão é a que fica” não serve para justificar críticas e rechaços quando o assunto é jazz: se Wynton é conservador em suas idéias e posições filosóficas acerca da cultura americana, por outro lado suas obras expressam uma ousadia que poucos músicos e compositores adquiriram durante a história do jazz – o que prediz que todo crítico ou apreciador deveria pesquisar mais aspectos da música do trompetista de New Orleans antes de proferir julgamentos baseado em impressões ligadas à sua personalidade cotidiana. Como trompetista Wynton Marsalis é o único músico da história do Grammy a ser laureado em dois gêneros musicais diferentes em simultâneo: antes de ser premiado com mais sete prêmios Grammy, em 1983 ele ganhou um prêmio na categoria “Best Instrumental Soloist” pelo disco de música erudita Carnival (com o regente Raymond Leppard e a National Philharmonic Ochestra) e, na mesma ocasião, ganhou mais uma estatueta na categoria “Best Instrumental Solo” pelo fraseado inovador e estonteante de “Knozz-Moe-King”, no disco Think of One, álbum estrelado pelo seu primeiro grande quinteto, que inaugurava o renascimento do jazz através do estilo do neo-bop. Esse fato já prenunciava que sua carreira de trompetista na música erudita seria tão grande quanto sua carreira no jazz: o trompetista Maurice André (considerado por muitos o maior trompetista da música erudita do século 20) chegou a dizer que Wynton era, provavelmente, o maior trompetista de todos os tempos e, na esfera do jazz, muitos especialistas chegaram a afirmar que acabava de surgir o mais fantástico trompetista da história – os mais céticos e imparciais diminuíam dizendo: “Não, Wynton não é o maior trompetista da história do jazz, mas é, provavelmente, o maior desde Dizzy Gillespie e Clifford Brown”. Mas o que muitos não previam – principalmente os críticos mordazes – é que esse mesmo trompetista conseguiria ser, também, o maior compositor norte-americano da sua geração: depois de apresentar discos cheio de composições ousadas como Think of One (1983), Black Codes (From the Underground) (1985), Blue Interlude (1991) e On This House, On This Morning (1994), Wynton se consagraria, definitivamente, como um dos maiores compositores da história da música americana ao ser o primeiro músico e compositor de jazz a ganhar o Pulitzer pelo álbum Blood on the Fields (1997), entrando para o seleto rol de gênios compositores tais como Aaron Copland e John Adams. Antes de Wynton, o único compositor de jazz cogitado para receber a maior honraria da mídia e dos intelectuais americanos fora Duke Ellington, mas a tradição era dar o prêmio à gênios da música escrita, ou seja, da música erudita, já que o jazz sempre fora mais ligado à arte do improviso. Alguns compositores eruditos como Debussy, Aaron Copland, Stravinsky e Leonard Berstein já haviam usado elementos primordiais do blues e do jazz em suas composições. Mas no campo do jazz, poucos compositores conseguiram chegar ao patamar do rigor técnico e inventivo dos maiores compositores eruditos. Duke Ellington já mostrara, ainda na década de 30 e 40, que uma composição de jazz poderia ser tão elaboradamente escrita e arranjada quanto qualquer composição erudita. Charles Mingus tomou para si a responsabilidade de elevar a escrita jazzística à um patamar tão inventivo e cerebral quanto as obras de Stravinsky. Wynton Marsalis, por sua vez, está indo além: após ganhar o prêmio Pulitzer, o compositor passou a se dedicar integralmente na intersecção entre a arte do jazz e a arte da escrita erudita, unindo os dois universos em um punhado de obras tais como All Rise (sua primeira sinfonia para orquestra e big band, estreada pela Lincoln Center Jazz Orchetra e a Filarmônica de Nova Iorque em 2000), Quarteto de Cordas nº 1, A Fiddler's Tale (obra camerística em resposta à A História do Soldado, de Stravinsky) e suas duas recentes sinfonias, a Blues Symphony (escrita em homenagem a Martin Luther King, estreada pela Lincoln Center Jazz e a Orquestra Sinfônica de Atlanta) e a Swing Symphony (sua terceira sinfonia, estreada pela Lincoln Center Jazz Orchestra e a Filarmônica de Berlim em 2010). Esses três compositores máximos do jazz, Wynton, Duke e Mingus, foram os únicos que mostraram que a diferença entre o jazz e música erudita está apenas na linguagem, e que a escrita jazzística podia ser tão elaborada e cerebral quanto à erudita – ou que, numa “terceira via” – algo que já havia sido proposto por Ghunter Schuller em seu “Third Stream”, no início da década de 50 –, a fusão entre as duas linguagens é um terreno imenso no qual poucos criadores ousaram e ousam explorar suas possibilidades.

Especificamente em Blood on the Fields, Wynton Marsalis usa e abusa da ousadia típica do rigor da escrita erudita através de um projeto eminentemente jazzístico. Aliás, acima de tudo, Blood on the Fields é um ousado trabalho de pesquisa, colagem e de arranjo musical baseado na escravidão e na origem da cultura americana. Trata-se de uma composição jazzística moderna com o mesmo rigor erudito de um oratório ou uma ópera contemporânea, onde estão impressos os mais variados elementos musicais ligados ao jazz e a toda a cultura americana: a obra aborda desde elementos arcaicos e históricos como as work songs (canções indeterminadas, entoadas pelos negros enquanto trabalhavam nas fazendas de algodão), o negro spirituals (canções negras espirituais), o blues, o gospel (a canção protestante americana, oriunda do sul dos EUA), o bluegrass (estilo originário da country music), o ragtime, os rítmos afro-latinos, o second line (ritmo característico das bandas tradicionais de New Orleans) e o swing, até elementos modernos como a linguagem bebop, o post-bop e o avant-garde. O exotismo, a riqueza de efeitos e detalhes, é impressionante: sincopações saltitantes, cantos e contracantos sobrepostos, efeitos de surdinas inusitados, dissonâncias contrastantes, scat vocais (improvisação com a voz), gritos, vozes em coro, melodias espirituais entoadas, palmas, cacofonias, além dos solos inflamados de saxofones, trombones e trompetes e dos recursos tradicionais de percussão (como, por exemplo, o uso do pandeiro fazendo a vez da bateria em algumas partes). Ademais, por detrás de toda a riqueza do arranjo musical está o uso estratégico da voz para ditar uma temática baseada na escravidão norte-americana. Na verdade, a Blood on the Fields está registrada na Boosey & Hawkes (empresa especializada em editar e publicar partituras de obras clássicas – do moderno ao contemporâneo), como uma peça escrita para big band de jazz e três vocalistas, mas Wynton usa as vozes dos próprios músicos para ditar, em coro falado, a estória temática da obra: estória de um casal de negros, Jessé e Leona, que são tirados da África para trabalhar como escravos nos EUA. Os destaques ficam por conta da cantora Cassandra Wilson e John Hendricks nos vocais, de James Carter em alguns solos de sax barítono e clarone, de Herlin Riley na bateria e percussão, de Wyclife Gordon na tuba e Michael Ward no violino.

A exemplos de como aconteceu em outras obras dramáticas da história da música erudita ocidental – “Fidelio” de Beethoven, “Pasifal” de Wagner e “Wozzeck” de Alban Berg – em Blood on the Fields Wynton Marsalis mostra, de forma inovadora, como uma peça de jazz também pode fazer uso do drama para impor uma expressão musical exuberante: com moldes criativos na escrita, na orquestração, na rítmica e na improvisação. O drama por detrás de Blood on the Fields é sobre um casal de negros que são tirados de seus países na África para trabalhar como escravos nos EUA. Wynton diz que a obra não é, necessariamente, uma obra centrada na escravidão em si, mas no processo que levou os negros escravizados à se tornarem americanos de corpo, mente e alma. A estória é a seguinte: tirados dos seus países e das suas famílias, Jesse (na voz de Miles Griffit) e Leona (na voz de Cassandra Wilson) se conhecem e ainda no porão do navio que os transportava. Ele é um ex-príncipe e ela uma plebéia. E por ele ter vindo da realeza, sua arrogância prevalece de tal forma que ele não a aceita como uma igual: mesmo depois dela cuidar dos seus ferimentos, após uma tentativa de fuga. Já nos EUA, ele é posto ao trabalho e a todos os sofrimentos da escravidão, o que lhe faz questionar suas origens e sua personalidade. No meio, entre Jesse e Leona, o drama evidencia o personagem Juba (na voz de John Hendricks), um velho guru com quem Jesse eventualmente passaria a se aconselhar. Juba aconselha Jesse a encontrar sua nova identidade, lhe aconselha a amar sua nova terra, a aprender a cantar com alma (pois isso lhe aliviaria as dores) e lhe aconselha a questionar como ele gostaria de ser chamado quando fosse livre: “nigger, colored, negro, black, afro-american, african-american or the next name (maybe just american)?”. A relação com Leona, os conselhos de Juba e o sofrimento das chicotadas fazem com que Jesse adquire humildade para aceitar sua nova terra e mudar seu carácter. Ouçam!


Um comentário:

Raul Lima disse...

Adorei o blog!!! Parabéns!
Convido também a visitar o meu blog: www.yesraul.blogspot.com
e conferir as novas vertentes do jazz.
Abraço e Muita música!

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