Cinema, a sétima maravilha no mundo das artes! Ou melhor: cinema com jazz, uma combinação perfeita que, para um jazzófilo, vai além do entretenimento ou da distração! Em se tratando apenas de cinema – independente de ter jazz na trilha ou não – é impossível não citar o protagonismo da influência americana: partindo dos mudos de Charles Chaplin, passando pelo noir de Orson Welles, os suspenses de Alfred Hitchcock... enfim, até chegarmos aos mais “ecléticos” e “comerciais” como Brian De Palma, Robert Altman, David Lynch, Stanley Kubrick, Martin Scorcese, Steven Spielberg, Clint Eastwood...também gosto muito dos dramas de Woody Allen (onde a neurose e comédia são trabalhadas com extrema inteligência) e também adoro os filmes de Tim Burton, um mestre da fantasia e dos contos sombrios (uma espécie de Edgar Allan Poe do cinema, convenhamos). Contudo, quando se trata de “estudar cinema” – e não estou falando no estudo de âmbito acadêmico, mas sim das descompromissadas reflexões e observâncias que todo cinéfilo tem o direito e prazer de fazê-las –, me parece que não há nada mais conceitual e instigante do que o cinema europeu – especialmente o francês e o italiano. Isto é, a despeito das grandes produções hollywoodianas – que algumas vezes são ricas de recursos e efeitos, mas pobres em conceito artístico – o que me encanta no cinema europeu, por exemplo, são as produções baratas que, justamente por não terem tido riqueza de artifícios tecnológicos, inovaram na técnica de filmagem, na fotografia e no conceito com o qual se trabalhou as angústias, os anseios e os pecados humanos.
Em se tratando da compatibilidade do cinema com o jazz, o cinema europeu não chega a ser sonoricamente tão inundado quanto o cinema americano – até porque os EUA, é óbvio, sempre foi o berço e a casa desse gênero musical que, por sinal, se entralaçou com o cinema e cartoon desde o início da era do swing e dos primeiros filmes falados, já no final dos anos 20: tanto que, não por acaso, a primeira produção do cinema falado foi um filme sobre jazz chamado The Jazz Singer (1927), com o cantor e ator Al Johnson. Mas o cinema francês, por exemplo, é um enorme celeiro de produções interessantes onde vários solos de jazz – do bebop ao avant-garde – já apareceram como trilhas frequentes de filmes que, já de imediato ou posteriormente, passaram a ser considerados cults e clássicos eternos do cinema europeu. Se além de gostar de jazz, você também preza por um cinema mais artístico, cheio de indagações, polêmicas e reflexões, o melhor é que, em alguns casos , a trilha jazzistica lhe surgirá apenas como um “tempeiro a mais” em filmes que, conceitualmentes, já são por si só instigantes, reflexivos e até transgressores: como alguns filmes do cineasta Louis Malle, por exemplo. Quem ainda não assistiu Um sopro no Coração (1971), onde o new orleans jazz de Sidney Bechet e o bebop estonteante de Dizzy Gillespie e Charlie Parker fazem fundo para uma temática deveras polêmica: que é o incesto entre mãe e filho? Poizé, Um sopro no Coração, assim como o cool Ascensor para o cadafalso(1958), que tem a trilha assinada por Miles Davis, foi dirigido pelo invetarado Louis Malle, diretor que viveu à margem do movimento Nouvelle Vague.
Mas não foram só as composições de Dizzy Gillespie, Charlie Parker e Miles Davis que deram vida à filmes franceses. O hard bop espirituoso do baterista Art Blakey – com seu quinteto Jazz Messengers – também foi encomendado pelo excelente diretor Roger Vadim – outro expoente da Nouvelle Vague – para dar cor ao filme As Ligações Amorosas (1959), uma adaptação moderna do romance 'Les Liaisons dangereuses', publicado em 1782 pelo escritor Choderlos de Laclos. Já em "Round Midnight: Por Volta da Meia-Noite" (1978), dirigido por Bertrand Tavernier e com trilha sonora assinada por Herbie Hancock, o bebopper Dexter Gordon aparece não só como músico, mas como o ator principal num drama ambientado no início da década de 50, época do bebop e cool jazz. A história, escrita pelo escritor francês Francis Paudras, é inspirada nas vidas dramáticas do saxtenorista Lester Young e do pianista Bud Powell – lembrando que Paudras fora amigo e protetor do pianista Bud Powell em seus tristes dias de exílio em Paris. Enfim, Round Midnight se tornou, de imediato, o maior clássico do cinema mundial inspirado totalmente no Jazz – sem contar que Dexter Gordon foi nomeado o Oscar de Melhor Ator e Herbie Hancock ganhou o prêmio de Melhor Trilha Sonora Original.
Igualmente interessante é o uso do jazz de aspecto mais vanguardista em alguns filmes franceses. Em Un Eté Sauvage (1970), o cineasta Marcel Camus – que em 1959 já havia filmado Orfeu Negro, inspirado na peça de teatro Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes ( e com música de Tom Jobim) – escalou o altoísta Marion Brown para compor uma trilha sonora que fizesse jus ao título e à história de um garçom que vive entre o mundo dos hippies e artistas de ruas e o mundo de ricos e poderosos, já que ele é seduzido por uma típica madame rica para fomentar os desejos do marido voyeurista – daí que o free jazz de Marion Brown, gravado para esse filme e lançado em disco sob o título de Le Temps Fou, chega a ter uma roupagem um tanto “psicodélica”, ainda que, afora o piano elétrico, os instrumentos usados sejam todos acústicos. Já para Les Stances à Sophie (1970), o diretor israelense Moshé Mizrahi encomenda a trilha aos músicos do magnífico Art Ensemble of Chicago e à cantora de soul Fontella Bass, na época esposa do trompetista Lester Bowie. Les Stances à Sophie, apesar de dirigido por um israelense, é também um filme cult que representa a Nouvelle Vague, já que o próprio Mizrahi, além de radicado na França na época, também era antenado com a estética desse movimento. A propósito, LP, CD e DVD foram reeditados e relançados recentemente pela gravadora Soul Jazz Records: o disco Les Stances à Sophie do Art Ensemble of Chicaco é considerado um clássico da segunda fase do free jazz por sua notável distinção, a qual consiste numa pegada mais soul e funk ascrecentada ao som vanguardista da banda, além de pitadas da influência parisiense – lembrando, aliás, que nessa época não só Lester Bowie e seus companheiros do Art Ensemble of Chicago estavam “exilados” na França, mas vários outros músicos do free jazz norte-americano tais como Cecil Taylor, Steve Lacy, Archie Shepp e Ornette Coleman saíram dos EUA para explorar o mercado europeu, onde eles tinham, de fato, espaços para apresentar um som mais puramente artístico e experimentalista.
Então, aí estão algumas dicas resultadas da minha apreciação ao cinema francês: Louis Malle, Roger Vadim, Bertrand Tavernier, Marcel Camus e Moshé Mizrahi só foram alguns, dentre tantos, diretores que usaram o jazz como trilha de seus filmes. Para quem ainda não está familiarizado com esse tipo de cinema, imagine a combinação das rústicas paisagens das vilas parisienses e seus velhos prédios barrocos, seus “club du jazz” ou suas lojas de discos com as paisagens mais românticas de jardins, parques, obras de arte e hotéis de luxo, além de um toque puro de lirismo, moralismo e romantismo em conflito com a podridão pecaminosa escondida entre os finos vestidos e paletós da alta burguesia, bem como os lampejos de movimentos sociais, artísticos e filosóficos tais como o feminismo, e a liberação sexual de uma juventude rebelde e, então, dá pra se ter mais ou menos a noção do clima nostálgico e realista de tais filmes – especialmente em filmes que caracterizaram a nouvelle vague dos anos 60 e 70, movimento contestatório da burguesia e dos valores morais levado a cabo por um grupo jovens cineastas – dentre os quais Louis Malle, Roger Vadim e Marcel Camus – que obviamente não tinham muita grana nem tantos incentivos financeiros pra realizar suas filmagens.
Não por acaso, em 1968 os jovens franceses protagonizaram uma das maiores revoluções culturais que o mundo já documentou: a Revolução de 1968 concretizou a liberdade de expressão de uma juventude que desde meados dos anos 50, com o advento do rock’n’roll americano, já vinha aspirando ter uma maior participação da sociedade; mas muito mais do que isso, a Revolução de 1968 foi uma revolução repentina e globalizada que, já de início, passou a ser um marco, um ponto de partida para outros movimentos, acontecimentos e transformações sociais como os movimentos ecologistas, a efetiva explosão do feminismo, o surgimento organizações não-governamentais (ONGs), os protestos sociais em defesa das minorias e dos direitos humanos, bem como os protestos contra as políticas da Guerra Fria, contra guerras regionais e ocupações colonialistas (como a Guerra do Vietnam, por exemplo). Aliás, a Revolução de 1968 não só chegou a ser entendida como uma extensão dos movimentos sociais americanos da década de 60 – dentre as quais a luta de Martin Luther King em favor dos direitos civis dos negros e os protestos contra a Guerra do Vietnã – como também influenciaria, de volta, os movimentos ocorridos nos EUA e no resto do mundo a partir daquela data. E o jazz, assim como o rock’n’roll e o cinema, foram elementos artísticos essenciais para a formação do novo pensamento de mundo instaurado por aquela nova juventude. Clique nas imagens para acessar mais informação e/ou até baixar as trilhas aqui mesmo no Blog Farofa Moderna.
Em se tratando da compatibilidade do cinema com o jazz, o cinema europeu não chega a ser sonoricamente tão inundado quanto o cinema americano – até porque os EUA, é óbvio, sempre foi o berço e a casa desse gênero musical que, por sinal, se entralaçou com o cinema e cartoon desde o início da era do swing e dos primeiros filmes falados, já no final dos anos 20: tanto que, não por acaso, a primeira produção do cinema falado foi um filme sobre jazz chamado The Jazz Singer (1927), com o cantor e ator Al Johnson. Mas o cinema francês, por exemplo, é um enorme celeiro de produções interessantes onde vários solos de jazz – do bebop ao avant-garde – já apareceram como trilhas frequentes de filmes que, já de imediato ou posteriormente, passaram a ser considerados cults e clássicos eternos do cinema europeu. Se além de gostar de jazz, você também preza por um cinema mais artístico, cheio de indagações, polêmicas e reflexões, o melhor é que, em alguns casos , a trilha jazzistica lhe surgirá apenas como um “tempeiro a mais” em filmes que, conceitualmentes, já são por si só instigantes, reflexivos e até transgressores: como alguns filmes do cineasta Louis Malle, por exemplo. Quem ainda não assistiu Um sopro no Coração (1971), onde o new orleans jazz de Sidney Bechet e o bebop estonteante de Dizzy Gillespie e Charlie Parker fazem fundo para uma temática deveras polêmica: que é o incesto entre mãe e filho? Poizé, Um sopro no Coração, assim como o cool Ascensor para o cadafalso(1958), que tem a trilha assinada por Miles Davis, foi dirigido pelo invetarado Louis Malle, diretor que viveu à margem do movimento Nouvelle Vague.
Mas não foram só as composições de Dizzy Gillespie, Charlie Parker e Miles Davis que deram vida à filmes franceses. O hard bop espirituoso do baterista Art Blakey – com seu quinteto Jazz Messengers – também foi encomendado pelo excelente diretor Roger Vadim – outro expoente da Nouvelle Vague – para dar cor ao filme As Ligações Amorosas (1959), uma adaptação moderna do romance 'Les Liaisons dangereuses', publicado em 1782 pelo escritor Choderlos de Laclos. Já em "Round Midnight: Por Volta da Meia-Noite" (1978), dirigido por Bertrand Tavernier e com trilha sonora assinada por Herbie Hancock, o bebopper Dexter Gordon aparece não só como músico, mas como o ator principal num drama ambientado no início da década de 50, época do bebop e cool jazz. A história, escrita pelo escritor francês Francis Paudras, é inspirada nas vidas dramáticas do saxtenorista Lester Young e do pianista Bud Powell – lembrando que Paudras fora amigo e protetor do pianista Bud Powell em seus tristes dias de exílio em Paris. Enfim, Round Midnight se tornou, de imediato, o maior clássico do cinema mundial inspirado totalmente no Jazz – sem contar que Dexter Gordon foi nomeado o Oscar de Melhor Ator e Herbie Hancock ganhou o prêmio de Melhor Trilha Sonora Original.
Igualmente interessante é o uso do jazz de aspecto mais vanguardista em alguns filmes franceses. Em Un Eté Sauvage (1970), o cineasta Marcel Camus – que em 1959 já havia filmado Orfeu Negro, inspirado na peça de teatro Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes ( e com música de Tom Jobim) – escalou o altoísta Marion Brown para compor uma trilha sonora que fizesse jus ao título e à história de um garçom que vive entre o mundo dos hippies e artistas de ruas e o mundo de ricos e poderosos, já que ele é seduzido por uma típica madame rica para fomentar os desejos do marido voyeurista – daí que o free jazz de Marion Brown, gravado para esse filme e lançado em disco sob o título de Le Temps Fou, chega a ter uma roupagem um tanto “psicodélica”, ainda que, afora o piano elétrico, os instrumentos usados sejam todos acústicos. Já para Les Stances à Sophie (1970), o diretor israelense Moshé Mizrahi encomenda a trilha aos músicos do magnífico Art Ensemble of Chicago e à cantora de soul Fontella Bass, na época esposa do trompetista Lester Bowie. Les Stances à Sophie, apesar de dirigido por um israelense, é também um filme cult que representa a Nouvelle Vague, já que o próprio Mizrahi, além de radicado na França na época, também era antenado com a estética desse movimento. A propósito, LP, CD e DVD foram reeditados e relançados recentemente pela gravadora Soul Jazz Records: o disco Les Stances à Sophie do Art Ensemble of Chicaco é considerado um clássico da segunda fase do free jazz por sua notável distinção, a qual consiste numa pegada mais soul e funk ascrecentada ao som vanguardista da banda, além de pitadas da influência parisiense – lembrando, aliás, que nessa época não só Lester Bowie e seus companheiros do Art Ensemble of Chicago estavam “exilados” na França, mas vários outros músicos do free jazz norte-americano tais como Cecil Taylor, Steve Lacy, Archie Shepp e Ornette Coleman saíram dos EUA para explorar o mercado europeu, onde eles tinham, de fato, espaços para apresentar um som mais puramente artístico e experimentalista.
Então, aí estão algumas dicas resultadas da minha apreciação ao cinema francês: Louis Malle, Roger Vadim, Bertrand Tavernier, Marcel Camus e Moshé Mizrahi só foram alguns, dentre tantos, diretores que usaram o jazz como trilha de seus filmes. Para quem ainda não está familiarizado com esse tipo de cinema, imagine a combinação das rústicas paisagens das vilas parisienses e seus velhos prédios barrocos, seus “club du jazz” ou suas lojas de discos com as paisagens mais românticas de jardins, parques, obras de arte e hotéis de luxo, além de um toque puro de lirismo, moralismo e romantismo em conflito com a podridão pecaminosa escondida entre os finos vestidos e paletós da alta burguesia, bem como os lampejos de movimentos sociais, artísticos e filosóficos tais como o feminismo, e a liberação sexual de uma juventude rebelde e, então, dá pra se ter mais ou menos a noção do clima nostálgico e realista de tais filmes – especialmente em filmes que caracterizaram a nouvelle vague dos anos 60 e 70, movimento contestatório da burguesia e dos valores morais levado a cabo por um grupo jovens cineastas – dentre os quais Louis Malle, Roger Vadim e Marcel Camus – que obviamente não tinham muita grana nem tantos incentivos financeiros pra realizar suas filmagens.
Não por acaso, em 1968 os jovens franceses protagonizaram uma das maiores revoluções culturais que o mundo já documentou: a Revolução de 1968 concretizou a liberdade de expressão de uma juventude que desde meados dos anos 50, com o advento do rock’n’roll americano, já vinha aspirando ter uma maior participação da sociedade; mas muito mais do que isso, a Revolução de 1968 foi uma revolução repentina e globalizada que, já de início, passou a ser um marco, um ponto de partida para outros movimentos, acontecimentos e transformações sociais como os movimentos ecologistas, a efetiva explosão do feminismo, o surgimento organizações não-governamentais (ONGs), os protestos sociais em defesa das minorias e dos direitos humanos, bem como os protestos contra as políticas da Guerra Fria, contra guerras regionais e ocupações colonialistas (como a Guerra do Vietnam, por exemplo). Aliás, a Revolução de 1968 não só chegou a ser entendida como uma extensão dos movimentos sociais americanos da década de 60 – dentre as quais a luta de Martin Luther King em favor dos direitos civis dos negros e os protestos contra a Guerra do Vietnã – como também influenciaria, de volta, os movimentos ocorridos nos EUA e no resto do mundo a partir daquela data. E o jazz, assim como o rock’n’roll e o cinema, foram elementos artísticos essenciais para a formação do novo pensamento de mundo instaurado por aquela nova juventude. Clique nas imagens para acessar mais informação e/ou até baixar as trilhas aqui mesmo no Blog Farofa Moderna.
2 comentários:
Texto sensacional! Conseguiu sintetizar muito bem o prazer que é um bom filme europeu, daqueles que nos faz repensar a vida, apreciado em conjunto com o melhor do jazz.
Ficaria muito contente com outros textos sobre o assunto.
Obrigado!
Assino embaixo do que disse o Guilherme, meu caro Vagner!!!
Um texto primoroso, digno do amor que os franceses nutrem pelo cinema e pelo jazz. Complementando, lembro que o Duke Jordan compôs a trilha sonora do filme "As ligações perigosas", no final dos anos 50, dirigido por Roger Vadin.
E que venham outras postagens abordando a relação entre jazz e cinema - que tal falar sobre a trilha de "Quero viver", feita por Johnny Mandell e executada por Gerry Mulligan e um verdadeiro Estado Maior do West Coast?
Abração!!!
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