Recentemente, em minhas leituras pelos blogs de jazz da net, li um comentário degradante sobre a atuação das mulheres no jazz. O blog em si é respeitado e, realmente pode-se dizer, é confiável na maneira como dispõe as amostragens e informações, principalmente no que concerne ao jazz tradicional, especialidade do sítio em questão – pena que o moço que postou o tal “ensaio” acabou por mostrar, através da sua opinião, que dentre uma quantidade de boas laranjas existe ao menos uma com vestígios de bolor. O comentário sobre a atuação das mulheres no jazz ia, mais ou menos, nesta direção: “Jazz não é um ofício próprio pra mulheres, pois elas não têm a capacidade física e técnica para improvisar, suar e assoprar seus instrumentos por muito tempo com o mesmo virtuosismo que um homem e, se desprezássemos todas as mulheres que já passaram pelo jazz, o gênero seria o mesmo, pois nenhuma delas trouxeram inovação”. Sinceramente fiquei pasmo com a fundamentação do expert e, mais uma vez sendo sincero, até consegui imaginar o sentido que ele quis passar com essa afirmação infeliz: realmente, desde 1900 até hoje, foram poucas as mulheres que passaram pelo jazz e, dessas poucas, há uma, duas, três...cinco no máximo, as quais poderíamos considerar, de fato, ‘inovadoras’. Mas, oras bolas, se considerarmos as proporções, também existiram 'enésimos' jazzistas homens que não foram inovadores: muitos foram apenas intérpretes, clones e/ou revivalistas aficcionados pelas criações de alguns poucos gênios. Então aí fica uma pergunta: Será mesmo que as mulheres têm menos feeling que os homens na hora de compor ou tocar música ou falta mais espaço para que elas mostrem sua capacidade? E a outra consideração, talvez a maior delas, é que a importância da ascensão da mulher no jazz vai muito além da questão técnica. Trata-se de Igualdade: se a mulher tem conquistado direitos de igualdade nas profissões e nas artes, porque no jazz - uma expressão artística por natureza - seria diferente? Ou seja, para fins de comparação - e considerando a frase segregalista "o jazz poderia ser o mesmo sem a atuação da mulher"- basta observar que, alguns tempos atrás, governantes também poderiam ser escolhidos sem o voto feminino – sem problema algum. A princípio, a lei não as dava o direito de voto pelo menos por dois motivos: 1º) o sexo feminino sempre fora tratado como ‘frágil’, ‘doméstico’ e ‘submisso’, sendo uma imposição amparada por velhos cânones morais e tradicionais; 2º) a política demorou pra descobrir que as mulheres poderiam ser ‘representativas’: a ‘utilidade’ massiva das mulheres – de forma mais participativa na sociedade – aconteceu, infelizmente, devido à necessidade de mão-de-obra barata imposta pela Revolução Industrial (já que elas deveriam ganhar menos que qualquer homem). Portanto, a questão reside em princípios éticos, políticos e morais, os quais só foram possíveis de serem reformulados e estabelecidos através de movimentos feministas modernos. E no jazz é mais ou menos a mesma situação: temos um gênero musical que, como toda a sociedade evoluída, veio evoluindo em direção à uma democracia, apesar dos vários conflitos raciais, regionais e estéticos que foram responsáveis pela pluralidade do gênero. Preconceitos à parte, a igualdade e liberdade de criação foi, desde o início, automaticamente concedida a todos – brancos, negros, velhos, jovens, homens e mulheres -, `a qualquer um que tivesse capacidade de tocar e compor Jazz. O julgamento do trabalho de qualquer um desses compositores ou músicos sempre foi e só pode ser conferido à crítica especializada e ao público, mas nenhum deles foram obrigados a nascer inovadores ou revolucionar a música - claro que alguns, de fato, o fizeram, mas outros estiveram e estão presentes apenas para somar de alguma forma: ou sendo apenas revivalistas e intérpretes ou sendo criadores particularmente originais. E essa condição de existência vale para todos: jovem ou velho, homem ou mulher.
Voltando na questão da representatividade da mulher como símbolo de genialidade e virtuosismo no jazz, temos, nesse sentido, uma crescente exponencial que não nos deixa dúvida sobre a capacidade que uma mulher tem de ser uma grande jazzista do mesmo porte que um homem consegue ser, o que já reprova a tese estapafúrdia sobre a diferença física de uma mulher em relação ao homem ser um empecilho. A revalorização do jazz no mercado a partir da década de 80 e, por consequência, a inclusão do mesmo como disciplina nas grandes escolas e universidades americanas, abriu espaço para que muitas mulheres desejassem se profissionalizar nesta categoria musical. Para exemplificar, deixarei alguns nomes como prova de que houve e há mulheres com reais capacidades de mostrar liderança e criatividade em frente à uma banda de marmanjos. O sucesso da mulher no jazz esteve, desde sempre, relacionado ao jazz vocal, mas nos ultimos anos surgiram muitas mulheres que estão fazendo a diferença enquanto instrumentistas e compositoras. Partindo do início do jazz, onde já existiam mulheres-instrumentistas de grandes talentos, deixo alguns exemplos como Lil Hardin (foi esposa de Louis Armstrong, talentosa pianista, bandleader, grande compositora, sendo respeitada e venerada por gigantes de sua época como Jelly Roll Morton e Fletcher Henderson), Mary Lou Williams (pianista e bandleader, teve composições e arranjos encomendadas por Duke Ellington, Dizzy Gillespie e Benny Goodman; foi uma verdadeira inovadora do jazz: era extremamente original na forma como tocava stride e, por conseqüência, acabou influenciando ninguém menos que Thelonious Monk), Toshiko Akiyoshi (bandleader e pianista japonesa influenciada por Bill Evans), Carla Bley (um dos principais nomes do jazz avant-garde da década de 60, junto a Paul Bley, Michael Mantler, Bil Dixon e outros vanguardistas, é uma das compositoras e bandleaders mais originais e inovadoras da história do jazz), Regina Carter (considerada a maior violinista atual e uma das jazzistas mais aclamadas em todo mundo), Ingrid Jensen (trompetista de grande talento, foi uma das principais solistas da Maria Schneider Orchestra), Maria Schneider (a principal bandleader do jazz contemporâneo), Renee Rosnes (uma das pianistas mais requisitadas dos últimos anos, atualmente ela é pianistas do legendário San Francisco Jazz Collective), Jane Ira Bloom (original e inovadora saxsopranista do jazz contemporâneo, uma pioneira do uso de efeitos recursos eletrônico no sax) , Matana Roberts (saxofonista vanguardista, associada ao núcleo da AACM), Nicole Mitchel (saxofonista e flautista de vanguarda, também associada à AACM), Marylin Crispell (uma das principais pianistas do free jazz contemporâneo, foi pupila de Anthony Braxton), Terri Lyne Carrington (baterista de grande pegada e intensidade, já tocou com Herbie Hancock, Wayne Shorter, dentre outras lendas vivas do jazz) e, para encerrar, deixo o exemplo e sujestão (pra quem quiser conhecer) da trombonista Reut Regev (isrraelense, a trombonista é um dos mais novos nomes da Downtown de Nova York, cenário vanguardista americano). Pronto, amigos! Para que o expert do blog citado e outros preconceituosos tenham certeza de que a força das mulheres no jazz é iminente, só nos faltará mostrar-lhes uma moça - jazzista - que toque tuba.
23 comentários:
Que preconceito...ainda tem gente pensando exatamente como os homens machistas pensavam à séculos atrás
Nossa! Não sabia que uma mulher segurando um trombone poderia ser tão atraente!
Lascivo!
Bom, apesar do talento das meninas citadas no artigo, a contribuição delas para o jazz é ínfima em comparação com a masculina. O top 30 para qualquer jazzófilo provavelmente nao incluira uma jazzista sequer.
Não significa incapacidade de qualquer tipo das mulheres com esta arte. Seja lá qual for o motivo da baixa participação feminina no mundo jazzistico, é fato que tá muito longe da masculina.
" O top 30 para qualquer jazzófilo provavelmente nao incluira uma jazzista sequer"
Desculpe discordar Bruno: não generalize!. Talvez, no SEU top 30 não entraria nenhuma instrumentista mulher, mesmo. Mas eu mesmo e vários colegas jazzófilos incluiríamos, sem sombra de dúvida, algumas dessas mulheres nos nossos Top 30...eu incluiria Carla Bley que é uma das jazzístas mais inovadoras da história do jazz, Mary Lou Williams estaria na minha lista de maiores compositores da história do jazz e Jane Ira Bloom estaria na minha lista de maiores saxofonistas do jazz contemporâneo...Aliás, só pra constar: a Jane Ira Bloom já foi considerada a melhor saxsopranista do ano pelo menos umas quatro vezes nos rankings da revista Downbeat, desbancando marmanjões como Wayne Shorter, Branford Marsalis, Steve Wilson, dentre outros nomes do instrumento...a Maria Schneider e a Regina Carter sempre estão no top dos jazzistas mais aclamados dos ultimos anos, fazendo com que seus colegas homens fiquem na sombra...quer dizer: não se trata de competição, feminismo, machismo, etc...trata-se de igualdade!
Então seu top 30 teria 3 mulheres! E os 27 homens remanescentes?
É uma diferença imensa.
É nesse ponto que destaquei do artigo: quanto à contribuição delas ao longo da história. Como disse, apesar dos talentos ressaltados por você, ainda sim são pequenos comparados a Miles/parkers/mingus/bakers/mullingans/blakeys, etc.
O simples fato de ser perfeitamente observável que em comparação com homens, poucas mulheres até hoje se aventuram no Jazz. E isso é constatado em academias que ja frequentei de minha cidade e acredito ao redor do mundo.
É notório que a partir do ponto em que para cada 20 albums lancados de jazz 1 é majoritariamente feminino, a participação masculina será mesmo esmagadora.
Mas essa mulher sabe segurar um trombone!
Eita!
rsrs...vc acha?
bem, bruno, seria mesmo uma diferênça esmagadora, mas vc não pode desconsiderar as proporções. Por exemplo: se formos considerar que para uma infinidade de jazzmans existiram apenas uns 20 que realmente foram revolucionários, então, em proporção, o número de 2 jazzwomans inovadoras para 20 existentes não seria uma 'vergonha', dado o preconceito e a falta de espaço que a mulher sofreu e ainda sofre nesta categoria musical...
...mas o que eu quis expressar neste meu post não foi uma relação baseada em números: não se trata de números! Trata-se de reconhecimento em relação à capacidade das mulheres serem jazzistas inovadoras e, principalmente, trata-se de quebrar esse tabu preconceituoso!
Ou seja, o pequeno número de mulheres existentes no jazz não pode justificar a frase "as mulheres são incapazes para o jazz"...isso é ridículo! Se existem um diferênça esmagadora entre homens e mulheres que tocam jazz, é porque elas foram e são vítimas de preconceitos e rejeições e não porque elas não tenham capacidade de serem virtuoses e criativas.
A capacidade física é outro 'porém': tá certo que uma mulher tem muito mais dificuldade de de tocar um trompete, um trombone ou um contrabaixo, mas isso não quer dizer que algumas delas não consigam superar essas dificuldades e/ou até serem tão virtuoses quanto os homens podem ser. E, ainda, se uma mulher não pode ser virtuose, isso não quer dizer que ela não venha compensar essa incapacidade em feeling e criatividade...Ora, o respeitadíssimo e veneradíssimo Miles Davis, um sisudo homem, não conseguiu ter o mesmo fôlego que Dizzy Gillespie, por que uma mulher tem que ser virtuose pra ser respeitada como uma jazzista autêntica?
Aff, vcs homens são muito machistas. A Esperanza Spalding toca aquele contrabaixo enorme e o toca muito bem, melhor do que certos homens. Ela esteve no brasil no Tim Festival. Arrasou!
O autor estrangeiro do blog tem uma opinião e merece ser respeitada, concorde-se ou não. Você Vagner, infelizmente, tem a mania de ridicularizar a opinião dos outros. A opinião não foi machista e sim politicamente incorreta. Quer dizer, foi isso que eu apreendi da SUA LEITURA, já que sua leviandade não permitiu nem sequer um link para o texto original!
Desculpe se pareço ofensivo, mas são coisas assim que espantam futuros leitores e perdem os antigos.
"Você Vagner, infelizmente, tem a mania de ridicularizar a opinião dos outros. A opinião não foi machista e sim politicamente incorreta"
"Desculpe se pareço ofensivo, mas são coisas assim que espantam futuros leitores e perdem os antigos."
Não, caro Benitez! Imagina! Não está e, acredito, demorará para parecer ofensivo. Mas já que está defendendo a 'opinião' do moço em questão, então tenho que dizer: eu não sou obrigado a ficar omisso à opinões mal fundamentadas, até porque, como vc mesmo disse, esta opinião está politicamente incorreta e, só por isso, já merece muito bem ser contestada...e contestar é diferente de ridicularizar: a não ser que o autor da tal opinião contestada se sinta ridicularizado...aí é problema dele!
Ora convenhamos que, sob todos os pontos de vista (ética, política, e, principalmente pelos fatos atuais do jazz contemporâneo) essa opinião merece ser constetada, afim de não contaminar novos apreciadores de jazz. As pessoas precisam saber que o espírito do jazz, apesar dos conflitos estéticos e raciais de outrora, já evoluiu a ponto de abrigar princípios humanos como igualitarismo e democracia.
E, acredite, eu não preciso linkar o artigo e nem vou fazê-lo, pois tenho muito respeito pelo moderador do blog e pelas informações e opiniões bem fundamentadas que por lá já presenciei. Se as pessoas estiverem interessada em saber da fonte do artigo, elas mesmo não tardarão em encontrá-la!
Bom por isso nao entrei no mérito da "incapacidade das mulheres" para esse ofício. Simplesmente quanto a reduzida contribuição da classe para o jazz.
O discurso do politicamente correto costuma jogar uma toalha em cima de muita questão e atrapalhar o debater de algumas idéias como a cometarista de cima destacou. Quanto a refutar o argumento da incapacidade delas acredito que provavelmente o faz corretamente.
Mas tomar cuidade pra daqui a pouco gente com "medo" de parecer machista falar que homens e mulheres têm desempenho semelhante na Fórmula 1.
bela comparação! rs
Billie Holiday em Lady Sings The Blues , Etta James em At Last , Astrud Gilberto em The Girl From Ipanema (um classico da bossa na voz desta magnifica cantora) entre outras perolas das divas que o jazz tem pra mencionar. Em briga de cachorro grande não se mete a colher mas fica ai o meu recado pra reflexão. Pitta! Belo comentario e digo mais ainda...vc foi feliz em resalta-las em primeiro plano. Fica mna paz.
Borboletas de Jade sem querer deu munição para o autor (até agora desconhecido) inicial da polêmica: só citou cantoras.
"bela comparação! rs"
Olha você aí de novo, fazendo pouco caso, Vagner.
Sabe o que tem em comum tocar jazz, dirigir um F1 e escrever tratados filosóficos? Se necessita de INSPIRAÇÃO e TRANSPIRAÇÃO.
Mulheres não têm TRANSPIRAÇÃO E INSPIRAÇÃO? rs
Sim, Vagner, por isso são atividades semelhantes, é possível uma comparação entre elas. E não de uma "bela comparação ! rs", do jeito que você escreveu.
Ta bom, então, Benitez..rs! Obrigado por comentar.
Obrigado Flávia! Escrevi esse artigo mais baseado no atual cenário do jazz contemporâneo, mais propriamente o norte-americano que tem tido, cada vez mais, a presença de mulheres brilhantes. Mas essa questão da "Economia do Jazz" que vc ressaltou é mesmo muito interessante. Graças à revalorização do jazz no mercado fonográfico desde a década de 80 e a integração do jazz em grandes universidades, muitas mulheres estão tento o acesso merecido que outrora elas não podiam.
Agradeço a sua presença - uma jornalista especialista em jazz - aqui no Farofa Moderna, Flávia! Muita Paz e muito Jazz!
nossa, Vagner!
Que blog maravilhoso vocÊ tem!
Gostei muito...
quanto ao preconceito, acho lamentável. Ja vi mulheres destruindo no improviso....mandando muito bem.
Vagner, sou o produtor de um pianista chamado Rodrigo Andreiuk.
Gostaria que conhecesse o trabalho dele! Deixo aqui dois links: www.myspace.com/rodrigoandreiuk e o site oficial: www.rodrigoandreiuk.com
vou lhe mandar um email
pois gostaria de seguir com seu contato!
um abraço
Christian
Olá Vagner. Apesar de ter sido postado há mais de um ano, estou tomando conhecimento agora desse post e confesso que estou embasbacada com as coisas que li. Quero parabenizar-lhe pelo seu post sobre esse preconceito da mulher no jazz, ressaltando a elegância que mantém na busca de constantemente aprofundar a qualidade das discussões. E também o comentário da Flávia, o mais bem embasado de todoss esses, acrescentando a ele a lembrança do fato de que a mulher só pode passar a tocar fora de casa, ou seja, profissionalmente, a partir da década de 60, então não há como falarmos de todo o séc XX! Quero dar uma sugestão: acrescente mais links das musicistas no seu índice de músicos, como a Maria Schneider, a Carla Bley, a Toshiko, a Diana Krall, para dar uma valorizada... Aquele abç!
Além dessas ainda posso ressaltar a grande Hiromi Uehara.
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