Como bem disse uma vez o genial compositor finlandês Jean Sibelius (1865-1957), um dos últimos dos grandes compositores do romantismo e detentor de um melodismo dos mais exóticos e intrigantes da história da música, “nem todos compositores podem ser inovadores, alguns podem ser apenas diferentes e pessoais” – e ele disse isso não só porque ele próprio era considerado retrógrado diante da modernidade dos anos 20 e 30, mas também porque ele tinha a real noção de que a música necessita tanto dos “inovadores” quanto dos “continuadores” e “tradicionalistas”: compositores que assimilam as técnicas inovadoras das vanguardas passadas e, através de fusões de estilos ou de novos espamos renovadores, eles as tradicionalizam, as tornam comuns. Da mesma forma, e como foi dito na resenha do post acima, não existe nada que Zappa tenha escrito no âmbito da música erudita que já não se tinha descoberto. No entanto, assim como outros compositores pós serialismo integral – como, por exemplo Alfred Schnittke, Arvo Pärt e Toru Takemitsu – ele foi personalíssimo e é totalmente relevante como um grande representante do século XX , ou seja, mesmo que sua música seja uma ode à Stravinsky, Berg ou Varèse, encontra-se, nele, grandes quantidades de personalismo, escritas intrincadas de difícil execução e até um certo rítmo e melodismo próprios, provenientes tanto da sua compreensão autodidata das técnicas vanguardistas como do seu próprio estilo peculiar de compor canções para o rock, dentre outras características iconoclastas. Em geral, Zappa é classificado como um iconoclasta-mor, um representante do ecletismo que tomou a música erudita a partir da segunda metade do século XX (um fenômeno que também é chamado de poli-estilismo) – e se formos levar em conta todo o seu apanhado de composições, poucos compositores conseguiram ser tão ecléticos quanto ele o foi: talvez, John Zorn... Com um catálogo de mais ou menos 60 obras conhecidas, escritas para orquestra, synclavier, coral, conjuntos de camera e eletroacústica – afora as que ainda não foram catalogadas ou ainda estão em poder da sua família –, Zappa , morto em 1993 em decorrência de um câncer na próstata, não conseguiu emplacar todas suas peças em gravações oficiais, mas já foi agraciado com ao menos cinco grandes gravações dedicadas exclusivamente à ele: uma com Pierre Boulez e seu Ensemble InterContemporain, outra em dois volumes com Kent Nagano e a Orquestra Sinfônica de Londres e mais uma trilogia de álbuns gravados pelo Ensemble Modern, dois deles lançados postumamente pela Família Zappa. Parece, então, que os puristas, fãs dos clássicos "Deuses da Música", terão de engolir o fato de que Zappa, dantes um humano errático -- talvez, agora, um semideus -- se tornou um venerado e zombeteiro príncipe no palácio de Apollo -- ou quem sabe ele não esteja lá, em algum lugar do Olimpo, com uma guitarra zombando da erudição de Zeus... Abaixo, algumas notas e impressões sobre tais registros:
Boulez Conducts Zappa: The Perfect Stranger (EMI, 1984)
1. The Perfect Stranger (12:42)
2. Naval Aviation in Art? (2:43)
3. The Girl In The Magnesium Dress (3:09)
4. Dupree's Paradise (7:52)
5. Love Story (0:55)
6. Outside Now Again (4:05)
7. Jonestown (5:27)
1, 2, 4: Ensemble InterContemporain conduzido por Pierre Boulez
3, 5, 6, 7: The Barking Pumpkin Digital Gratification Consort
O álbum foi gravado em Paris, em abril de 1984, no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique), institudo fundado por Pierre Boulez para ser um grande centro de estudo e pesquisa da música eletroacústica. São sete faixas intercaladas: três na execução do Ensemble InterContemporain e quatro executadas pelo próprio Zappa aos teclados do sintetizador Synclavier (as quais são creditadas ao The Barking Pumpkin Digital Gratification Consort, atrelado ao seu selo independente Barking Pumpkin). Talvez, por ter sido dirigido em parceria com Boulez, um serialista fascinado pelo pontilhismo e atonalidade, ele prezou por mesclar certas nuances da música atonal (nas músicas executadas pelo ensemble) com nuances da eletroacústica meditativa, mas sem esquecer do seu melodismo próprio, oriundo das canções do rock'n'roll: encomendada por Boulez, a faixa título The Perfect Stranger, por exemplo, traz referências temáticas e sonoras do filme 200 Motels, dirigido por Zappa em 1971; enquanto a faixa "Outside Now Again" executada ao Synclavier, é uma transcrição do solo da guitarra de Zappa no tema "Outside Now" gravado no álbum Joe's Garage, de 1979. No entanto, longe de ser algo “psicodélico”, serial, sinuoso, caótico ou de contar com os espamos rítmicos stravinskyanos adotados em outras obras suas, Zappa adota um discurso preponderantemente programático, quase que quadrado e com passagens e notas bem destacadas, sobretudo nas peças orquestrais "The Perfect Stranger" e Dupree's Paradise, praticamente deixando-as parecíveis com peças contemporâneas de outros compositores pós-seriais que, cansados das viajens conceituais e experimetalistas, voltaram a adotar um certo grau de classicismo no século XX (Penderecki, por exemplo). As nuances mais escuras, atonais e meditativas ficam por conta das faixas Naval Aviation in Art (com o ensemble) e Jonestown (com o Synclavier), essas ainda mais lentas e repletas de notas longas.
London Symphony Orchestra Vol. 1 & Vol. 2 (Barking Pumpkin Records,1983)
Volume 1
1."Sad Jane" – 10:05
2."Pedro's Downy" – 10:26
3."Envelopes" – 4:11
4."Mo 'n Herb's Vacation, First Movement" – 4:50
5."Mo 'n Herb's Vacation, Second Movement" – 10:05
6."Mo 'n Herb's Vacation, Third Movement" – 12:56
Volume 2
1."Bogus Pomp" - 24:32
1."Bob In Dacron" - 12:12
2."Strictly Genteel" - 6:53
Bob In Dacron (First Movement)
Gravadas pela Orquestra Sinfônica de Londres no início de 1983, as peças contidas nestes dois volumes – o primeiro, lançado em 1983 mesmo; o segundo, só lançado em 1987 – são, no mínimo, geniais; bem como as interpretações, à cargo da condução de Kent Nagano, são, no mínimo, brilhantes. Aqui, sim: Zappa mostra toda sua personalidade regada de elementos rítmicos e tímbrísticos oriundos de Stravinsky e Varèse. Primeiro e segundo de uma série de volumes que a Orquestra Sinfônica de Londres gravaria com base em compositores do século XX, trata-se não só da melhor gravação orquestral de Zappa – ainda que ele, perfeccionista, não tenha ficado totalmente satisfeito com o processo na época – como também pode ser posta em qualquer estante com os melhores álbuns de música erudita contemporânea. O primeiro volume traz três peças avulsas – "Sad Jane" em dois movimentos (totalizando 10:05 minutos), “Pedro's Downiy" (10:26) e "Envelopes" (4:11) – e mais uma espécie de suíte concertante para clarineta em três movimentos chamada Mo 'n Herb's Vacation – algo magnífico. O segundo volume traz uma peça extensa chamada “Bogus Pomp” (24:32) mais duas peças mais curtas: "Bob In Dacron" em dois movimentos (totalizando 12:12 minutos) e "Strictly Genteel" (6:53). Impressões quanto as nuances e aos arranjos? Pois bem: imagine um conjunto de efeitos de flashes sonoros (numa combinação de choques de pratos e notas agudas), contrastes entre partes pianíssimas e partes em alta intensidade sonora, pizzicatos desgovernados de violinos, beats do rock, sincopações jazzísticas, o uso evocativo da voz e uma “cozinha” rítmica brilhante e detalhista com tambores, bateria e quites de percussão solta. Compilados épocas diferentes e em Lps separados, em 1995 a Rykodisc lançou os dois volumes em um único CD: London Symphony Orchestra Vol. 1 & 2.
Ensemble Modern: Trilogy for Zappa!
O Esemble Modern é uma orquestra de câmera formada em 1980 por músicos de vários países, todos especialistas no repertório moderno e contemporâneo. Trata-se de um dos poucos coletivos especializados em música contemporânea a receber grande respeito e um considerável status global comparável com o status das grandes orquestras sinfônicas e filarmônicas do mundo – assim como, por exemplo, o Kronos Quartet. As gravações e concertos do Ensemble Modern incluem peças dos principais compositores do século XX e XXI tais como Arnold Schoenberg, Charles Ives, Olivier Messiaen, Pierre Boulez, Steve Reich, Anthony Braxton, dentre outros. A primeiras gravações do Ensemble Modern dedicadas à obra de Zappa foram realizadas, ainda sob sua própria supervisão, entre 1991 e 1992, prezando por peças encomendadas, peças mais curtas e complicadas, com elementos de improvisação livre e com partes faladas por narradores e vocalistas (textos que expressavam a sua crítica irônica): em 1992 foram realizadas, ao vivo, as gravações dessas peças sendo tocadas no Festival de Frankfurt sob a direção do maestro Peter Rundel, as quais deram origem ao extraordinário álbum The Yellow Shark (Rikodisc), atualmente considerado um dos registros “cults” da música erudita contemporânea; antes, em 1991, o Ensemble Modern havia entrado em estúdio para gravar um ensaio preparativo para o próprio The Yellow Shark, com um outro conjunto de peças gravadas que ficariam arquivadas até serem editadas e lançadas em disco em 1999, pela Família Zappa: o resultado foi o álbum Everything Is Healing Nicely (UMRK) . Recentemente, em 2003, o Ensemble Modern lançou o álbum Ensemble Modern Plays Frank Zappa: Greggery Peccary & Other Persuasions (RCA Red Seal), esse com quase as mesmas características – com arranjos eruditos e o uso de vocalistas e narradores –, só que as audições são mais acessíveis e familiares: aqui, ao contrário dos dois álbuns anteriores, constituídos de peças que foram encomendadas diretamente a Zappa, o ensemble não só toca peças de rigor erudito que estavam a muito guardadas no catálogo como também faz uma releitura de algumas canções e peças gravadas em discos da sua fase roqueira e fusionista: estão relacionados, por exemplo, temas como The Adventures of Greggery Peccary, do álbum Sudion Tan (1978), e "Night School" e "Beltway Bandits", ambas do disco Jazz From Hell. Para fans e não fans, vale a pena comprar a trilogia!!!
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