Algumas pessoas, aprisionadas pelo limitante sensacionalismo midiático que envolve as artes, estão acostumadas a cultuar a impressão de que não houve e não há, em nossos dias, músicos tão peculiares, únicos, distintos quanto aqueles mestres icônicos da história, tais como Igor Stravinsky, Miles Davis, John Coltrane, Charles Mingus, Eric Dolphy, Frank Zappa...dentre alguns outros. Tudo Bobagem. Basta não ter preguiça e adquirir um bom tino de pesquisador para constatar que cada época, cada geração, produz seus ícones -- e o que é mais intrigante: nem sempre os artistas mais conhecidos e aplaudidos na mídia são os mais distintos e inovadores, advindo, daí, a necessidade da pesquisa. É o caso do saxofonista e compositor Tim Berne. Cultuadíssimo nos meios underground -- da Downtown americana aos circuitos da free improvisation européia -- e nem tão cultuado nos grandes holofotes da mídia especializada, trata-se de um músico de jazz dos mais distintos que já se ouviu nas últimas décadas: não precisa-se de muitas audições ou leituras sobre sua obra e carreira para constatar que sua música é dotada de personalidade própria; e ainda que ela não soa ruidosa e cacofônica ao extremo, como é o caso da maioria dos músicos de free jazz e improvisação livre, ela tem uma personalidade gritante a qual consiste num abstrato que, de tão bem elaborado, não é um abstrato de todo inaudível, mas um emaranhado marcante de fraseados disformemente bem construídos, de composições escritas à mão as quais fogem dos padrões lineares (ou circulares) da canção convencional e de livres improvisações, com direito à efeitos acústicos ou eletroacústicos dos mais ríspidos, rústicos e encrustados. O mais interessante é que, ao ler excertos da sua biografia -- dispostos em muitos sites e fanzines da net, através de entrevistas e resenhas sobre seus álbuns -- constata-se que essa sua personalidade única foi crescendo e evidenciando-se aos poucos até tornar-se, de fato, gritante aos ouvidos do público e ganhar importância para a crítica mais atual -- ou seja, se é que existe um "culto" às obras do saxofonista, essa não foi algo que aconteceu já em seus primeiros 10 anos de carreira, mas algo que foi tornando-se evidente aos poucos, através de muitos projetos com variadas formações de bandas, dentre os quais Science Friction é um dos mais recentes e impactantes.
Julius Hemphill |
Eu já tinha postado o álbum The Five Year Plan, o primeiro da carreira de Tim Berne, aqui no blog. Mas isso foi no início do site, em 2007: desde então, já ouvi vários discos seus e esperava um momento sedutor para dedicar-lhe um post, já que é difícil encontrar materiais escritos em português que dizem respeito à sua obra. Garoto branco, nascido em 1954, Berne nunca fora bitolado em jazz ou instrumentos musicais e passou o final dos anos 60 e início dos anos 70, sua fase entre a passagem da adolescência à fase adulta, apenas como um bom apreciador e comprador de discos de rhythm'n'blues (entenda-se, genericamente, como o blues, o soul e o funk já sob os embalos comerciais de meados da época): ele curtia muito a cantora Aretha Franklin e artistas como Sam & Dave e Johnnie Taylor, ambos da legendária gravadora Stax, na época a principal concorrente da Motown Records, da qual ele também gostava de muitos artistas, principalmente de Martha and the Vandellas e Gladys Knight. Mas sua realidade e sua visão musical mudaria totalmente quando, em meados daquela década, um amigo lhe apresentou o álbum Dogon A.D (Mbari Records, 1972/ Freedom, 1977) do saxofonista Julius Hemphill, artista independente conhecido por misturar free jazz com aspectos do funk e da soul music: foi aí que, fascinado naquele som -- o qual, embora selvagem, lhe pareceu ter o mesmo rigor de sensibilidade souful dos registros da Stax --, em 1974 ele decide se mudar para Nova Iorque para estudar saxofone com seu ídolo. Na Big Apple, além de tomar instruções de Julius Hemphill, Tim Berne perambula pelas ruas, spots, estúdios e pequenos night clubs da cidade onde ainda dava-se espaço para músicos de jazz, gênero que cada vez mais parecia estar fadado à extinção enquanto música de mercado: mesmo assim, num cenário onde a maioria dos músicos penavam para encontrar espaços onde poderiam tocar por alguns poucos trocados, ele presenciou inflamadas gigs de jazz e livre improvisação: viu Sun Ra com John Gilmore no pequeno clube Slugs', Sam Rivers com seus convidados no legendário Studio RivBea, Sonny Rollins no Village Gate, Art Ensemble of Chicago no Five Spot, dentre outras apresentações de músicos como Cecil Taylor, Jimmy Lyons, Andrew Cyrille, Dewey Redman, dentre outros expoentes da "década perdida". Começa aí sua carreira.
Em 1979, o jovem Tim Berne dá sua primeira grande tacada como músico e bandleader ao fundar seu próprio selo, a Empire Records. Com ela, lançou cinco álbuns e liderou gravações com músicos como Ed Schuller, Olu Dara, Paul Motian, John Carter, Glenn Ferris e Bill Frisell. Depois dessa fase, após duas gravações para o selo italiano Soul Note, Berne foi curiosamente preterido para trabalhar na grande Columbia Records, onde gravou os álbuns Fulton Street Maul (1986) e Sanctified Dreams (1988), os quais chegaram a gerar uma certa celeuma nos corredores da empresa e nos bastidores da crítica especializada: "Afinal de contas, o que um músico branco, um aventureiro da estética do free jazz, estava fazendo alí na gravadora que estava contratando jovens músicos negros afim de resgatar o hard bop e onde a prata da casa era ninguém menos que Wynton Marsalis?" -- era o que o público e a crítica perguntava. Numa entrevista de 1988, Tim Berne comenta que sua breve passagem pela Columbia Records foi uma tentativa frustrada de um produtor chamado Gary Lucas, que enxergou, na sua sonoridade, algo que pudesse ser a anunciação de uma "nova era" do jazz: "It was kind of a freak. This guy, Gary Lucas, who I knew growing up was working there doing ad copy. He was trying to find shit to produce. He started coming into Tower (Records) and started harassing me. He wanted tapes and I finally I gave him some stuff, including a duo I did with (Bill) Frisell. I think he heard part of that and decided that he could sell it as 'new age.' He pitched it to them as a 'new age' thing from this nice little white guy, unbeknownst to me (laughs). So, he got a deal. It was a pretty bad deal but it was still a deal. It surprised me that he got it together. It was great. That's when I did my first record for them, Fulton Street Maul. He was pretty nervous in the studio- he was saying 'you know, this might be a little out for them.' At that point, I had no illusions of grandeur. I said 'well, it's too late now.' I figured that I'd make a good record and just see what happened. I couldn't sell out if my life depended on it because I don't know how to." Essas não foram suas melhores gravações -- esteticamente falando --, e nem elas representaram vendas expressivas como os executivos esperavam, mas essa passagem por uma grande gravadora contribuiu para que Tim Berne alcançasse um público maior, conseguindo obter uma agenda de shows cada vez mais ativa dentro dos EUA e em várias outros países. Pois bem: como toda boa polêmica, vem ápice e a fama e depois volta-se ao limbo.
Hong Kong Sad Song - More Coffee (Fractured Fairy Tales, JMT, 1989)
Já fora da Columbia em 1988, Tim Berne volta-se à sua condição de artista underground e agora passa por um momento de "reformulação" da sua música e da sua identidade como instrumentista. Neste processo, foi muito importante a estadia do saxofonista no selo JMT, gravadora que o produtor Stefan Winter criou para ser totalmente especializada totalmente no jazz de carácter mais progressista da época (selo onde Steve Coleman, Greg Osby, Cassandra Wilson, Django Bates, dentre outros músicos, iniciaram a carreira e que, atualmente, é relançado pela excelente Winter & Winter, do mesmo produtor). Na JMT, Berne iniciou projetos ousados e aventurosos como o Miniature -- um trio inusitado com Hank Roberts ao violoncelo e Joey Baron na bateria (sendo que, aí, o uso do violoncelo pode ser entendido como uma influência direta de algumas formações de Julius Hemphill, que mantinha uma excelente parceria com o violoncelista Abdul Wadud) -- e o seu elogiado e duradouro quarteto Bloodcount, com Chriss Speed ao sax tenor, Marc Ducret na guitarra, Michael Formanek ao contrabaixo e Jim Black na bateria: à época, entre o final dos 80 e início dos anos 90, sua escrita composicional começou a se tornar mais cerebral, cada vez mais elaborada, de forma a não deixar o ouvinte detectar elos entre a passagem do que foi escrito e do que logo seria improvisado -- isto é, sem abandonar a intrincância do free jazz, suas composições passaram a soar mais como suítes e pouco tinham a ver com aquela estrutura convencional de tema-improvisos-volta ao tema. Alguns registros dessa fase que são bem elogiados e sempre muito indicados pela crítica especializada são Fractured Fairy Tales e os três volumes da série Paris Concert que o quarteto Bloodcount gravou ao vivo na França: trata-se de Lowlife , Poisoned Minds e Memory Select. A partir daí, Tim Berne faria da década de 90 um período destinado a impor, cada vez mais, sua nova identidade: além de Miniature e Bloodcount (com o qual já realizou mais de duas centenas de apresentações em vários países), o saxofonista fundou uma pá de projetos distintos como o Paraphrase (sax-trio com o baterista Tom Rainey e o contrabaxista Drew Gress), o Big Satan (outro trio com Tom Rainey e o guitarrista Marc Ducret), Caos Totale (septeto com o contrabaixista Mark Dresser, o trombonista Steve Swell, o baterista Bobby Previte, o trompetista Herb Robertson, o guitarrista Marc Ducret e o pianista Django Bates) e Science Fricton Science (quarteto com Tom Rainey, Craig Taborn e Marc Ducret), dentre outros.
Manetee Woman (Science Friction, Screwgun, 2002)
Músico de uma discografia vasta, de muitos projetos e prolífico empreendedor, em 1996 Berne decide fundar outro selo independente, o Screwgun Records. Paralelamente a esta faceta, Tim Berne seria cada vez mais reconhecido como um grande compositor, recebendo encomendas para compor para grupos instrumentais de renome como o Rova Saxophone Quartet e o famoso Kronos Quartet, quarteto de cordas especializado em música contemporânea. Dessa fase com o novo selo um dos seus projetos que mais me chamou a atenção foi o Science Friction. Lançado em 2002 num álbum homônimo, trata-se de um dos registros mais originais e bem estruturados de toda sua discografia. Em "Science Friction", Berne evidencia uma composição rica de ingredientes diversos, partindo do uso de elementos do free jazz e da fusion –- estéticas que foram impostas nas décadas de 60 e 70 –- até elementos de gêneros musicais mais contemporâneos: ele usa e abusa de elementos do noise, música eletrônica e, também, fica claro o uso das harmonias dissonantes e dos “ritmos quebrados”, chegando a ficar evidente uma certa influencia do estilo M-Base, estética criada pelo altoísta Steve Coleman. A forma -- melódica, rítmica e harmônica -- com a qual Tim Berne estruturou suas composições com todos esses elementos, é simplesmente fantástica! A concisão, intensidade e uniformindade da banda é outro diferencial: as frases intrincadas de Berne –- essas totalmente contemporâneas -- recebem um suporte genial através da riquíssima bateria de Tom Rainey, do piano elétrico de Craig Taborn e das guitarras acústica e elétrica de Marc Ducret. Science Friction, produzido pelo compositor e guitarrista David Torn, é um dos registros que sintetizam perfeitamente as colagens sonoras do estilo chamado modern creative, uma das estéticas dominantes neste início de século 21. Ademais, é preciso salientar que Tim Berne não é um daqueles músicos do qual você deve se cansar rápido do seu estilo, escolhe um "clássico" da sua discografia e desdenha todo o resto: ainda que numa primeira audição lhe soe difícil, é preciso reconsiderar novas tentativas, pois trata-se de um músico com uma discografia vasta, com vários projetos distinto uns aos outros e com um estilo próprio que é incopiável e, portanto, merece ser reverenciado. Para quem estiver interessado em saber mais deste exótico compositor e habilidoso saxofonista -- que, assim como John Zorn e John Hollenbeck, é um dos grandes expoentes do reduto underground da Downtown nova-iorquina -- sugiro encarar as dicas deste post como um ponto de partida para seu universo particular: clique nas imagens para acessar fontes de informação em inglês e garimpem (comprando ou baixando) seus vários discos e projetos registrados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário