Acaba de chegar em minhas mãos o ótimo álbum Perpetual Motion, gravado no final de 2010 pelo saxofonista colossal -- porém ainda pouco conhecido do grande público -- Donny McCaslin, um dos músicos do qual falo sempre de forma muito adjetivada -- e o faço simplesmente porque ele realmente se tornou, por sí só, um jazzista adjetivado. Pra quem ainda não o conhece, McCaslin (44 anos) é, atualmente, a principal estrela do sax tenor no jazz contemporâneo a contracenar com os já cultuados Mark Turner, Chris Potter e Joshua Redman (inclusive, os brasileiros que estiveram no Savassi Jazz Festival 2009, em Belo Horizonte, puderam conhecê-lo de perto). Como sideman ele tem brilhado em diversos combos e coletivos, tais como o Steps Ahead (onde ele substituiu Michael Brecker, em 1994) a Maria Schneider Orchestra, a Mingus Big Band e o Dave Douglas Quintet. Já como líder, seus últimos lançamentos, a considerar desde 2006, tem reafirmado não só seu talento e originalidade -- deixando mais evidente suas idéias, seus arranjos, suas composições e seu estilo próprio como improvisador, o que já lhe tirou fora do estigma de, eventualmente, vir a ser considerado apenas um seguidor de Michael Brecker --, mas tem sido aclamados como sendo pérolas primorosas do jazz contemporâneo no sentido de enriquecê-lo nos contextos do post-bop e do modern creative, principalmente porque, afora seus arranjos primorosos, o saxofonista tem empregado o uso de formações instrumentais inusitadas, sem contar, também, seu solos estonteantes os quais sempre são um deleite à parte: estes lançamentos são Solar (Sunnyside Records, 2006), In Pursuit (Sunnyside Records, 2007), Recommended Tools (Greenleaf Music, 2008), Declaration (Sunnyside Records, 2009) e Perpetual Motion (Greenleaf Music, 2010) -- são pelo menos nestes quatro álbuns onde pode-se analisar, com mais nitidez, a busca do saxofonista em se tornar diferenciado nas três frentes que completam um músico de jazz: como improvisador, compositor e arranjador.
Como eu bem disse que resenharia alguns lançamentos, dentre os tantos que forem noticiados aqui -- e os que forem resenhados serão organizados para consulta na sessão LANÇAMENTOS deste blog --, este Perpetual Motion é o primeiro de 2011 que recebe uma notinha especial. Já há algum tempo que eu venho me surpreendendo com Donny McCaslin, nao apenas por constatar que ele é um grande saxofonista, mas por constatar sua grande capacidade como compositor. Isso porque a cada álbum que lança, McCaslin leva à cabo configurações instrumentais diferentes para dar vazão às suas composições e arranjos requintados: um quinteto acrescido da ênfase rítmica da percussão em In Pursuit; trio de sax, bateria e contrabaixo em Recommended Tools; uma compacta brass band de oito instrumentos, metais mais saxofone, em Declaration -- são, enfim, distintas as idéias que a cada disco surgem, o que nos leva a crer que o saxofonista tem um grande desafio de trabalhá-las sem destoar seu estilo próprio, sem soar incoerente em idéias dispersas. Para Perpetual Motion, ele leva à cabo uma espécie de quinteto "semi-elétrico" -- uma banda que combina fraseados e nuances da instrumentação acústica com uma tênue psicodelia proporcionada pelo piano elétrico (Fender Rhodes), mais algumas pitadas de efeitos eletrônicos --, escalando, para tanto, David Binney (saxofone alto, manipulação electrônica), Adam Benjamin e Uri Caine (ambos revezando-se entre o piano e o Fender Rhodes), Tim Lefebvre (baixo elétrico) e Antonio Sanchez e Mark Guiliana (ambos revezando na bateria). Gravado em Setembro de 2010, Perpetual Motion foi lançado na última semana de Janeiro de 2011, sendo portanto um dos ótimos lançamentos que poderá constar nas listas dos melhores álbuns deste ano -- quer dizer, desde já ele passa a ser uma aposta deste blog. Co-produzido pelo altoísta David Binney, o álbum traz dez faixas: sete delas são composições unicamente de McCaslin; a oitava faixa é um rápido interlúdio, um fragmento idealizado por Mark Guiliana; a nona faixa, "Impossible Machine", foi escrita e arranjada em parceria com Binney; e, por fim, décima faixa, "For Someone" é um epílogo de autoria do pianista Uri Caine, com ele ao piano acústico apenas.
Mas, aprofundando-se na síntese deste álbum, qual é o significado do título "Perpetual Motion"? Em italiano "perpetual motion" quer dizer "moto perpétuo", que em português diz-se "movimento perpétuo". Na música, "moto perpétuo" está relacionado à uma técnica musical compositiva, um fluxo contínuo de notas em andamentos rápidos que são aplicadas em uma determinada parte da composição; ou pode ser, também, pedaços de peças, partes inteiras, que são tocados repetidamente por inúmeras vezes -- como um ciclo que se repete indefinidamente. Já na ciência, "perpetual motion" está relacionado à um sistema cíclico que utiliza-se da energia gerada através do seu próprio movimento: seria como uma hipotética maquina que pudesse trabalhar sem energia elétrica, mas unicamente através de uma suposta energia gerada por seu próprio movimento. Perpetual Motion, de Donny McCaslin é assim: um álbum de identidade post-bop, mas que pode ser analisado basicamente como uma espécie de um mosaico de nuances em torno do funk e fusion, tendo, como tempero, vaporosos, reverberantes, inebriantes e tênues efeitos de eletrônica e piano rhodes -- é como um ciclo de variações em torno, principalmente, da rítmica do funk, mas sem soar repetitivo em demasiado. É curioso, portanto, o modo como McCaslin pincela as suas várias idéias em torno dessas influências sempre deixando-as implícitas através de grooves e arranjos inusitados. Ou seja, não se trata, aqui, de reviver tais influências -- o funk, o fusion, os efeitos elétricos e eletrônicos... -- tal como foram originadas ou como são tarimbadamente exploradas no mundo da música afora, mas trata-se de configurá-las para o idioma do jazz contemporâneo -- e o melhor de tudo é que o saxofonista realiza essas configurações deixando nítida a sua originalíssima personalidade musical, já constatada em seus álbuns anteriores. Dito isto, é preciso delinear, a seguir, como são trabalhadas essas influências, fazendo uma análise auditiva em algumas faixas do álbum. A primeira faixa, "Five Hands Down", começa com uma introdução numa sonoridade e pegada um tanto "funk-rock": aí os protagonistas são o piano Fender Rhodes, baixo elétrico e a bateria, vindo em seguida o sax de McCaslin intervindo com o tema e, logo após, improvisos calmos e bem pontuados que vão atingindo um êxtase mais ou menos estável, até que se volta ao tema e se desemboca num final com agudas distorções cacofônicas, onde o baixo elétrico acrescenta um grave efeito de amplificador na última nota -- destaque, como coadjuvante, para o baterista Antonio Sanches, que se destacará, ainda, por outras faixas do álbum. A faixa-título Perpetual Motion, a segunda faixa, é protagonizada pelo sax, bateria e contrabaixo, com suaves intervenções do Fender Rhodes: trata-se de um canção melodiosa que desemboca em um funky polirrítmico, um pano de fundo para os improvisos velozes e viscerais de McCaslin -- e ele não economiza no registro, indo do grave ao agudo com muita alma, imprevisibilidade e emoção. Já em "Firefly", quarta faixa do álbum, McCaslin cria uma atmosfera um tanto inebriante: trata-se de uma balada lenta e melodiosa entoada ao seu sax tenor, enquanto, ao fundo, o pianista Adam Benjamin aplica as texturas levemente psicodélicas do Fender Rhodes e David Binney aplica ecos de efeitos eletrônicos: a canção nos soa como se estivéssemos flutuando em alguma dimensão exótica ou em nossas próprias lembranças (boas lembranças, claro!) -- um efeito que, aliás, se repete em outras faixas, em alguns pontos melódicos e bem harmonizados. O álbum prossegue, enfim, com sua veia rítmica um tanto "funk", voltando a se notabilizar através da soulful e bluesy "Memphis Redux": trata-se de uma melancólica canção ambientada em bases melódicas e harmônicas do rhythm'n'blues -- é o tema mais "assobiável" do álbum, embora o desenvolvimento de improvisos caminhe para a mesma angularidade presenciada nas faixas mais complexas. A faixa seguinte, "L.Z.C.M", traz um funk de clima um tanto "noir", como se fosse uma dessas trilhas sonoras que ouvimos em inícios ou fins de filmes de aventura com abordagem retrô. O álbum termina, enfim, com "For Someone", uma bela balada impressionista destilada aos dedos experientes de Uri Caine, um breve epílogo ao piano acústico.
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