Num sábado típico de outono, de céu limpo e ensolarado, com baixa temperatura, encontrei com um amigo: o músico especializado em Improvisação Livre, Antonio "Panda" Gianfratti. Enquanto ele consertava suas peças de bateria no luthier, conversamos sobre vários assuntos, principalmente, claro, sobre música. Basicamente, lamentamos a distorção sobre o conceito musical difundido no Brasil, do modelo equivocado e segmentado que faz escola até os dias de hoje, como se fosse uma tradição à zelar. Comentei que fui à uma escola de música especializada em Jazz e o professor me disse que suas aulas se baseavam no estilo do trompetista norte americano Woody Shaw. Ótimo trompetista, mas eu caí fora, pois não creio que este seja o melhor método de ensino para um instrumento, centralizando no estilo de um músico em particular: e se fosse apenas usado como um de inúmeros exemplos, poderia até ser positivo na didática. Este assunto veio à tona naturalmente, pois estávamos na região da rua Teodoro Sampaio, conhecida como rua dos músicos pela alta concentração do comércio de instrumentos musicais, algumas escolas de músicas e onde ocorrem algumas apresentações músicais. Alí naquelas três quadras vemos o efeito do modelo imposto pelo "sistema" e sua consequente padronização de produtos. Dificilmente se encontra um instrumento peculiar como oboé, fagote, saxofone sopranino ou até mesmo no caso de instrumentos mais conhecidos -- como saxofones e guitarras -- não há um leque diversificado de modelos e marcas. Automaticamente, esta padronização acabou se transferindo também aos músicos, suas referências, preferências e seus estilos. Inúmeras vezes presenciei performances de ótimos músicos no quesito técnico, mas desprovidos de personalidade. Falando em personalidade, quando já estava para se encerrar uma performance musical -- que é promovida semanalmente por uma loja de instrumentos musicais que o público prestigia na calçada -- nós estávamos perto e o Panda ouviu o som de um saxofone tocando e disse-me: "Parece ser o Fábio". Eu respondí que poderia ser, pois ele costuma tocar naquele local. Fábio participou do projeto ao qual o Panda é desenvolvedor, o grupo de Improvisação Livre Abaetetuba, que hoje tem a maioria de seus membros radicados na Europa. Fábio havia se afastado do grupo por divergencias musicais e naquela tarde se reencontrou com o Panda depois de muitos anos. Quando Fábio terminou sua apresentação, se uniu a nós na conversa que se prolongou até certa hora da noite. Discutimos os rumos da improvisação livre, os avanços dela nos países europeus, das dificuldades de espaço, bem como o mantimento do cenário musical provedor desse estilo de arte, que é naturalmente restrito em todo o mundo. Em certo momento, Panda contou sobre sua frustração de não poder ficar residindo na Europa, onde alguns anos atrás teve a oportunidade de fazê-lo, desenvolvendo seu trabalho ao lado de grandes improvisadores do cenário europeu -- ele aconselhou ao Fábio, portanto, que aproveitasse enquanto tivesse tempo e oportunidade, pois essa é uma grande experiência à se vivenciar. Mas o fato do Panda não poder ficado na Europa naquela época, teve seu propósito, pois foi se mantendo aqui no Brasil que ele fez uma sólida parceria com o músico suiço radicado em São Paulo, Thomas Rohrer: juntos, Gianfratti e Rohrer, mantiveram vivas as possibilidades de haver algo mais consistente e pioneiro por aqui. Mas isso também não o impediu dele voltar novamente à Europa e ter novas experiências e fazer novas alianças com outros músicos, como foi o caso da suas parcerias com o contrabaixista William Parker.
Ademais, o trabalho da dupla Gianfratti e Rohrer abriu uma porta para outros músicos brasileiros interessados em Livre Improvisação: como foi o caso da jovem pianista Michelle Agnes, e até o meu caso pessoal, pois eu tive o privilégio de participar de bons encontros musicais com esses grandes improvisadores, após 2007.
Como eu disse ao Panda e ao Fábio: talvez em 10 anos, contando com o fim das barreiras de acesso à informação, com o advento da rede mundial de computadores que nos fornece amplo acesso da informação -- e de forma simultânea com os outros países --, possamos vislumbrar um cenário de música de improvisação livre, mesmo que restrito, mas sólido e contínuo em São Paulo ou até em outras partes do Brasil.
3 comentários:
Saudações!
Conheço o Panda e a dura jornada de fazer improviso livre por aqui. Fui membro durante 4 anos do projeto JazSmetak, coletivo de música experimental. É lamentável o preconceito e a falta de apoio que este tipo de arte sofre nesse país de mentes catequizadas...
Parabéns pela iniciativa!
Seguimos na luta pelo som...
Akira, belo relato.
É uma pena que até hoje, nesse país e nessa cidade que se vangloriam de serem 'altamente musicais', a improvisção livre permaneça sendo tão pouco vivida (tanto pelos ouvintes como pelos músicos).
Nos 70, o Márcio Mattos foi para Londres. Nos 80, o Ivo Perelman foi para os EUA. Em anos recentes, houve a saída do Yedo, do Alípio Neto e outros que vc conhece bem. Parece que isso não vai mudar tão cedo...
O Phill Freeman, autor do livro "New York is Now", diz que um dos problemas DE LÁ é a falta de público. E não porque as pessoas não se interessem pela música livre: simplesmente a ignoram.
Valeu Fabricio. O problema aqui é ainda primário, devería existir a chance de conhecer e depois o público se formaria. Algumas pessoas que puderam assistir as performances do Abaetetuba, gostaram e se interessaram pela improvisação livre e se tivessem acesso, teriam aproveitado mais as raras ocasiões. Quando houver o espaço devido para se divulgar ao público, naturalmnete se formará um cenário, mesmo que restrito. Temos que continuar tentando. abs
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