Se eu fizesse uma enquete neste blog perguntado aos nossos visitantes quais os dois maiores pianistas da história do jazz que trabalharam com o formato de banda composto por piano, baixo e bateria, uma grande maioria citariam, lógico!, os supremos Bill Evans e Keith Jarrett. Por isso mesmo, seria até pedante e desnecessário se eu publicasse algo no blog sobre Bill Evans ou Keith Jarrett que não fosse uma informação inédita, algum lançamento relevante ou alguma observação que ficou obscura em suas carreiras -- haja vista, a quantidade de publicações que estão disponíveis em português na internet, para qualquer curioso pesquisar e ler. E por isso mesmo, o blog Farofa Moderna, quando abrange o jazz, atua basicamente em duas frentes: buscando curiosidades da história que ainda não foram amplamente reveladas e atualizando nossos leitores acerca do que está acontecendo no âmbito contemporâneo. E o assunto deste post é sobre um trio de piano, contrabaixo e bateria que é enveredado pelo jazz de linhagem pós-moderna, o mais contemporâneo jazz possível. Desde o final da década de 90, quando o seminal pianista Brad Mehdau começou a lançar sua série "The Art of the Trio" -- baseado neste tradicional combo chamado de piano-trio --, o jazz contemporâneo foi atacado por um surto de inúmeros e distintos pianos-trios: dentre eles, os mais peculiares, ao meu ver, são o próprio Brad Mehdau Trio, o trio Bandwagon do pianista Jason Moran, o Vijay Iyer Trio, o sueco Esbjorn Svensson Trio e o iconoclasta trio The Bad Plus -- cinco combos legendários que, aliás, não apenas são os principais dentres os principais piano-trios da atualidade, como também são alguns dos principais agentes transformadores do jazz nesses últimos tempos. E dentre estes cinco citados, o mais polêmico e iconoclasta é, justamente, o The Bad Plus, banda com a qual retomo nossa série chamada "Gênios do Jazz na década de 2000-2010", que iniciei no Portal MTV em fins de 2010.
Constituído pelo pianista Ethan Iverson, o contrabaixista Reid Anderson e o baterista Dave King, o trio The Bad Plus é uma banda americana, da cidade de Mineápolis, Minnesota, que não se encaixa em nenhum rótulo convencional de jazz ou de qualquer outro tipo conhecido de música instrumental. O que esses caras vem fazendo com o jazz é muito original e interessante e, ao mesmo tempo, muito controverso, já tendo suscitado, inclusive, calorosas polêmicas quanto à autenticidade do trio enquanto banda de jazz. Trata-se de uma banda progressista que usa a ecleticidade como o seu carro-chefe ao fazer releituras diversas do pop e rock e até da música erudita contemporânea: ao invés de caminhar nas passadas do swing e/ou dos grooves convencionais e ao invés de utilizar standards jazzísticos, eles usam e abusam das canções de bandas como Heart, Bee Gees, Nirvana, Radiohead, Pixies, Iron Maiden e , as vezes, até de partes de peças escritas por compositores eruditos do século 20 como Stravinsky, Ligeti ou Debussy, tentando reproduzí-las através de releituras iconoclastas e temperando-as com elementos da improvisação jazzística contemporânea, bem como com vários elementos do avant-garde: improvisação livre, cacofonias barulhentas, dissonâncias e desafinações propositais, mudanças rítmicas discrepantes e etc. Com essa nova proposta de apresentar temas do pop e rock como possíveis standards de jazz, o trio se tornou um fenômeno nos EUA e em vários países do mundo -- inclusive no Brasil, onde eles já se apresentaram pelo menos umas três vezes nesses últimos anos. Em relação às polêmicas em torno da autenticidade do trio enquanto banda de jazz -- a maioria delas criadas por críticos conservadores e passadistas, diga-se de passagem --, os membros respondem que o jazz tem um espírito livre onde tudo é possível: "da mesma forma que os antigos músicos de jazz usavam temas da música popular americana como os de Gershwin, Frank Sinatra ou Cole Porter, nós usamos os temas da música pop contemporânea para atualizar nosso repertório" -- explicam. Neste aspecto de usar temas do pop e rock como possiveis standards contemporâneos do jazz, a justificativa é convincente e vai de encontro com o que dizem os principais jazzistas dos últimos anos: Brad Mehldau e Ben Allison, por exemplo, são adeptos das temáticas e poéticas do pop rock de linhagem mais sofisticada, fazendo uso de um repertório que varia do já tarimbado The Beatles dos anos 60 ao Radiohead dos anos 90 e 2000. Mas as formas pelas quais o The Bad Plus executa seus arranjos em torno destes temas do pop e do rock -- e principalmente as formas como eles se "apropriam" de pedaços de peças de compositores eruditos do século XX -- é, sem dúvida, um marco inédito e curioso até mesmo para os padrões contemporâneos e vanguardistas. Como é possível uma banda acústica -- com piano, contrabaixo e bateria -- unir, em um mesmo disco, temas de legendas musicais tão díspares -- de bandas de rock como Yes, Nirvana, Wilco, Flaming Lips e Pink Floyd, temas de bandas pop como Bee Gees e até pedaços de obras de compositores eruditos como Milton Babbitt, Igor Stravinsky e Gyorgy Ligeti -- dentro de uma única estética sonora e ainda tentar impô-la como sendo um estética jazzística? É esta dúvida que fica patente no álbum For All I Care (Heads Up, 2008), este de preponderância pop e com participação vocal da cantora Wendy Lewis, uma cantora indie de Chicago.
Mas é preciso ressaltar que os membros do The Bad Plus são excelentes compositores: não trata-se apenas de uma banda de releituras que se apropria de material alheio para endossar seu repertório... Em se tratando das composições escritas pelos próprios músicos da banda, a estética soa a mesma: as composições são escritas para soar com roupagens sofisticadas de pop e rock, mas o desenvolvimento delas se dá através de improvisações vanguardistas e influências da música erudita do século 20 -- e apesar desse hibridismo pós-moderno, é o jazz que é a verve da banda! Após cinco álbuns ambientados na seara instrumental, o album For All I Care (2008), com participação da cantora indie Wendy Lewis, foi o único que surgiu quase que totalmente com vocal e com sonoridade pop. Em 2010, porém, o trio resgata sua veia instrumental lançando Never Stop (E1 Entertainment, 2010), o primeiro álbum só de composições dos próprios músicos -- e que marca, aliás, o décimo aniversário do trio. Antes, o álbum Give (CBS Records, 2004) já mostrara algumas das mais interessantes composições escritas pelos próprios músicos. Em termos de releituras, este álbum destaca-se em temas como "Velouria" dos Pixies e "Iron Man" do Black Sabbath, onde o trio imprime versões um tanto intrigantes e iconoclastas em relação aos originais: às vezes soam carregados de improvisações livres; outras vezes chegam até a soar como se estivessem tocando uma sonata erudita escrita para piano; e outras vezes chegam a soar até mesmo como uma autêntica banda de rock, mas dotados de idiossincrasias. Já em relação aos temas escritos pelos próprios músicos, Give se destava em três faixas: And Here We Test Our Powers of Observation, escrita pelo contrabaixista Reid Anderson; Do Your Sums/Die Like a Dog/Play for Home, de autoria do pianista Ethan Iverson; e, por fim, Layin' a Strip for the Higher-Self State Line, onde o baterista Dave King mostra seu apreço pela música do pianista Vince Guaraldi, que ficou famoso por compor a trilha sonora do cartoon animado Charlie Brown e Snoopy. Abaixo, deixei esta última, que evoca um pouco do "espírito" da trilha original composta por Guaraldi.
Layin' a Strip for the Higher-Self State Line
Depois de Never Stop, o The Bad Plus acaba de lançar mais um projeto que promete instigar o surgimento de burburinhos nos meios da crítica especializada: a banda acaba de estrear uma inusitada adaptação do balé "A Sagração da Primavera", do compositor russo Igor Stravinsky, para o formato de piano-trio. Um dos compositores mais populares do século XX, ao lado do também russo Shostakovich, Stravinsky se tornou famoso justamente através de balés que apresentaram um novo e revolucionário estilo de orquestração e arranjo rítmico, tais como "O Pássaro de Fogo", "Petrouchka" e "A Sagração da Primavera", a peça que, em 1913, causou um verdadeiro motim de descontentes e horrorizados em sua estréia, no Théâtre des Champs-Élysées, em Paris: aliada ao revolucionário cenário criado pelo coreógrafo Vaslav Nijinsky, a obra transcedeu os limites de compreensão do público francês com suas dissonâncias gritantes, a inédita exuberância da sua orquestração e suas inesperadas mudanças rítmicas -- o problema, no entanto, era que o público ainda estava acostumado com as formas do balé clássico, compostos de valsas, polcas e outras danças populares em formas de orquestração clássica. Décadas posteriores, Stravinsky passaria por outras fases criativas: a fase neoclássica, onde ele se volta às formas das músicas barroca, clássica e romântica; e, por fim, a fase mais vanguardistas, onde ele adere ao dodecafonismo e ao serialismo integral -- sendo que em todas essas fases podemos encontrar obras emblemáticas que serviram de inspiração para seguidas gerações de músicos e compositores das mais variadas vertentes. De Debussy à Boulez, de Leonard Berstein à Wynton Marsalis, todos se inspiraram no estilo exuberante de Stravinsky em algum momento ou, no mínimo, ficaram maravilhados com suas dissonâncias, suas orquestrações de efeitos exuberantes e suas rítmicas inusitadas -- aliás, até Frank Zappa, o rockeiro ácido e sarcástico, inspirou-se nele em sua ousada faceta como compositor de música erudita contemporânea, isso já na década de 80. Mais recentemente, inclusive, Wynton Marsalis compôs uma ousada e criativa paráfrase à obra "A Soldier's Tale" (1918), obra na qual Stravinsky rompe com a estética russa para trilhar um caminho calcado mais no neo-clássico: o resultado foi a lúdica peça "A Fiddler's Tale", gravada e lançada em CD pela Sony Classical em 1999. Doze anos depois, agora em 2011, a exemplo de como fez Wynton, o trio The Bad Plus inspirou-se justamente na polêmica "Rite of Spring" (A Sagração da Primavera) para dar luz ao projeto "On Sacred Ground: Stravinsky's Rite Of Spring". Encomendada e comissionada pela Duke University e pela midiática e poderosa Lincoln Center for the Performing Arts -- onde Wynton tem grande influência --, esta "releitura" pós-moderna da Sagração da Primavera foi estreada em 8 de Janeiro de 2011 no Reynolds Theater no Bryan Center da Duke University. Na verdade, de acordo os músicos, a palavra certa não seria bem "releitura", mas seria "adaptação": eles recriaram a Sagração da Primavera numa forma de "paráfrase", de modo que a peça soaria como sendo uma obra escrita e arranjada por eles e não uma mera interpretação. Fosse apenas uma releitura, já seria algo muito curioso, mas, de fato, eles conseguiram fazer tal adaptação mantendo a sua sonoridade incomparável! Aguardemos, portanto, que este projeto saia em CD! Enquanto isso, os curiosos podem ouvir a execução da peça em sua recente premiére, na Duke University:
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