O que é Jazz? O que significa inovação e como ela deve surgir no jazz? O Jazz é uma expressão artística universal ou uma expressão cultural norte-americana? Cá estamos, prestes a ultrapassar o início do século 21, onde as imposições da era digital já não é novidade pra ninguém. No entanto essas velhas perguntas parecem não ter respostas, haja vista a freqüência com que voltam à tona através das intermináveis discussões entre estudiosos do Jazz. Essas perguntas estão relacionadas à uma outra pergunta mais simples e igualmente abrangente que, por sinal, há muito tempo que também não quer se calar : frente à essas inovações tecnológicas, como anda a evolução do Jazz? Resposta: embora muitos críticos e músicos estejam certos ao afirmar que o jazz estacionou numa tal de tendência revivalista generalizada, ele segue muito bem, obrigado! Até porque não se tem o que reclamar diante do fato de que todas as técnicas usadas no jazz contemporâneo – do fraseado bop aos recursos da eletroacústica – já são técnicas datadas de ,pelo menos, 50 ou 60 anos atrás, o que caracteriza esse revival generalizado que marcou as últimas décadas. Portanto, esse revivalismo às tradições e às técnicas estabelecidas pelas vanguardas históricas é uma característica da nossa contemporaneidade em detrimento da escassez de inovações estruturais após o excesso de experimentalismos impostos nas décadas de 60 e 70, o que culminou num movimento de retomada de todas as técnicas já inventadas e exploradas anteriormente. Essa tendência revivalista começou com um movimento contrário ao avant-garde chamado de neotradicionalismo, imposto pelos Young Lions na passagem do século 20 para o século 21 que, ainda hoje, perdura como uma grande influência no jazz contemporâneo, marcando a transição de uma geração que retomou o jazz na sua forma mais autêntica para a atual geração do Modern Creative, que preza por colagens e abordagens diversas sem renegar a tal da autenticidade jazzística expurgada pelos vanguardistas da década de 70 – daí esse movimento neo-tradicionalista ou tendência revivalista ser uma determinação dessa respectiva época a qual não se pode deslegitimizar, visto que uma tendência só começa quando outra já está saturada; ou seja, o neotradicionalismo só começou porque o fusion e avant-garde chegaram aos seus limites criativos e experimentais e, quando os ultrapassou, a identidade jazzística passou a dar lugar à abstrações sonoras incapazes de mostrar alguma significância estética ou cultural.
O jazz norte-americano x avant-garde europeu/ A Arte x Cultura
Aliás, em se tratando do indissociável aspecto cultural, encontra-se outro ponto de discordância que desde o início da década de 80 alimenta os vários conflitos entre os vanguardistas e os neo-tradicionalistas. Essa discordância surgiu, justamente, pelo fato de que o avant-garde – uma tendência européia (originada do Serialismo Integral) que influenciou e foi influenciado pelo Free Jazz - passou a desconsiderar todos os elementos tradicionais do jazz que pudessem engessá-lo dentro de um padrão ou um rótulo específico. Ora, ficou óbvio que ao desconsiderar a importância das referências tradicionais, esses músicos também estariam desconsiderando os aspectos culturais do Jazz que, durante meio século de existência, havia se desenvolvido como identidade cultural genuinamente americana. Ou seja, os músicos vanguardistas passaram a prezar o jazz enquanto veículo artístico pra acomodar seus experimentalismos e, ao mesmo tempo, passaram a desprezar o jazz enquanto veículo ou fenômeno sócio-cultural. Alguns vanguardistas mais serenos como Ornette Coleman, Muhal Richard Abrams e Max Roach, por exemplo, sempre compuseram baseado nas tradições norte-americanas: Ornette Coleman nunca desprezou de todo o blues nem o swing, Muhal Richard Abrams sempre foi um estudioso de técnicas antepassadas como o stride e o ragtime e Max Roach, por sua vez, sempre fora um músico revolucionário ligado à cultura negra e à tradição, chegando a compor obras que foram verdadeiros protestos contra a violação dos direitos dos afro-americanos (como a Freedom Now Suíte composta no início dos anos 60). No entanto, a evolução do Free Jazz mostrou que essas referências tradicionais e sócio-culturais foram quase que totalmente desprezadas, já que os músicos passaram a valorizar, sobretudo, os conceitos impostos pelo avant-garde europeu tais como o serialismo, o abstracionismo, a música concreta e afins. Na década de 70, essas influências européias somadas às influencias da música pop e da world music pressupunham que o jazz poderia “ser qualquer coisa” ou “não ser coisa alguma”: o jazz poderia ser tanto uma sessão de tambores e bricolage tocados pelos membros do Arte Ensemble of Chicago, como poderia ser um melodioso tema pop de Cindy Lauper tocado por Miles Davis, como também poderia ser qualquer seqüência sonora caracterizada por uma improvisação abstrata sem formato rítmico, harmônico ou melódico, como as improvisações dos europeus Peter Broztmann, Han Bennink e Evan Parker. Então, na verdade, com essa abrangência incoerente, o jazz chegava a mais uma de suas crises existenciais: o que era Jazz, de fato? Para os experimentalistas o jazz não poderia ser categorizável enquanto “gênero musical” e não poderia ser formatado por técnicas ou padrões estéticos, mas deveria ser apenas uma “expressão artística”, um ponto de partida com linhas difusas, sem quaisquer limites estéticos ou culturais que o categorizasse (?). Para os estudiosos mais puristas o jazz morria ali: exatamente naquela época.
A preocupação com os limites e representatividade do jazz ficou tão evidente, que a tendência neotradicionalista, surgida a partir de 1980, significou muito mais do que apenas a rejeição da nova geração dos Young Lions contra o abstracionismo e às fusões impostas na década de 60 e 70: através do neotradicionalismo essa geração de “jovens leões” retomou o sentimento de revalorização das tradições e técnicas impostas pelos mestres do passado, resgatando as técnicas de forma audaciosamente impetuosa, reformatando os formatos jazzísticos de outrora e revalorizando, sobretudo, o jazz enquanto fenômeno e identidade cultural afro-americana, tentando mostrar que o conceito de jazz enquanto arte não deve jamais se dissociar do conceito de jazz enquanto cultura americana. Um dos fatos sociais que possibilitou com que essa manifestação ganhasse força e legitimidade foi a desmarginalização e ascensão social do afro-americano nos meios da elite e da classe intelectual, após uma jornada de lutas dos artistas e líderes negros – como, por exemplo, o músico Max Roach, o poeta Gil Scott-Heron e o pastor Martin Luther King – que lutaram contra a segregação e repressão racial: esses protestos e lutas possibilitaram que os negros conseguissem seu espaço e reconhecimento na sociedade. Foi através dessa conquista que, entre meados da década de 70 para o início da década de 80, houve um considerável aumento no número de negros nas grandes universidades, possibilitando o surgimento de uma nova geração de intelectuais que iriam cobrar uma revisão e reconsideração da dívida que os americanos tinham para com a cultura afro-americana como um todo, de modo que até a cultura Hip Hop, uma expressão surgida nas ruas marginalizadas, passou a ser bem valorizada, chegando, inclusive, a trocar influencias com o jazz e a ser um grande produto da cultura de mídia. Esse fenômeno da atualização ou reformatação das formas jazzisticas mais autênticas – um exame que incluiu desde o New Orleans Jazz, passou pelo Bebop e aportou-se nos limites do Free Jazz de Ornette Coleman – chegou a ser chamado de Renascimento do Jazz, e foi creditada à força propulsora do jovem intelectual e trompetista Wynton Marsalis, o mais influente e comentado músico do jazz durante as últimas três décadas.
O protecionismo wyntoniano x a universalização do Jazz
Essa reformatação do jazz enquanto cultura afro-americana, liderada por Wynton Marsalis e defendida por influentes crítico e escritores (como Stanley Crouch que chegou a ser um músico de Free Jazz na década de 70, trabalhando com o saxofonista David Murray), influenciou toda a geração de músicos norte-americanos que caracterizou os anos 80 e 90, e ainda influencia a geração 2000 com um peso que está patente aos olhos de todos os críticos. Em contrapartida à seu sucesso como trompetista, compositor e líder da sua geração, a filosofia de Marsalis é vista como uma espécie de protecionismo artístico-cultural que alimenta as aspirações de estudiosos, artistas e críticos norte-americanos mais puristas e nacionalistas e, por outro lado, conflita com estudiosos e músicos que defendem que o jazz deixou de ser uma música norte-americana para ser uma música universal não-categorizável. Ou seja, para esses estudiosos a supremacia dos norte-americanos sobre o jazz, bem como a institucionalização do jazz em grandes cátedras e universidades acaba cristalizando o gênero ou impedindo sua evolução, o que não é, necessariamente, uma verdade. Aliás, o protecionismo norte-americano em relação ao jazz não é nada maior que o protecionismo europeu em relação ao avant-garde, visto que um tal crítico inglês chamado Stuart Nicholson resolveu escrever um livro, de título sensacionalista "Is Jazz Dead? (Or Has It Moved to a New Address)", onde tenta convencer que a inovação jazzística migrou para outros lugares do mundo, especialmente para a Europa, deixando de considerar como inovação as mais recentes transformações ocorridas em solo americano como, por exemplo, o M-Base de Steve Coleman. De fato, desde a Segunda Guerra Mundial, a propagação do jazz norte-americano se tornou um dos maiores fenômenos mundiais no ramo das artes. Isso equivale a dizer que o jazz, uma expressão musical que teve sua gênese e identidade desenvolvida através da cultura afro-americana, é, atualmente, um fenômeno mundial que está cada vez mais a crescer, o que também equivale a dizer que o jazz - um meio de expressão artística desenvolvido em solo norte-americano - vem influenciando diversas culturas musicais ao redor do mundo a ponto de se instituir em qualquer país do mundo, abrigando, inclusive, características regionais e locais sem, contudo, deixar de ser rotulado como “Jazz”. Percebam, por exemplo, como o jazz recebe denominações que denotam sua capacidade de se nacionalizar aonde quer que seja instituído: existe o jazz brasileiro, existe o jazz europeu, existe o jazz latino e até mesmo o jazz japonês. Ou seja, se o samba e a bossa-nova são frutos da cultura brasileira que já influenciou e influencia diversas expressões musicais ao redor do mundo, o jazz é fruto da cultura norte-americana com um poder de transformação exponencialmente maior, podendo moldar-se a quaisquer características regionais, estéticas e folclóricas. Mas, então, se o jazz pode influenciar e ser influenciado, se o jazz é capaz de se moldar à diversos formatos estéticos e estrangeiros, se o jazz pode adquirir várias nacionalidades, seria, de fato, coerente dizer que o jazz mudou de endereço e deixou de ser uma música genuinamente americana? É contra essa tentativa de “desapropriação” que Wynton Marsalis argumenta, fundamenta e insiste na tese de que assim como a música erudita foi formada por tradições religiosas e populares européias (cantatas, missas, corais, valsas, polcas, mazurcas e barcarolas) e depois passou a moldar-se em vários países do mundo abrigando suas respectivas culturas populares, o jazz norte-americano é, de fato, a música clássica norte-americana formada, também, por tradições populares e religiosas ( blues, gospel, cajun, cultura creole, negro spirituals, marching bands, soul, funky, groove e swing) que passou a influenciar várias culturas de vários países ao redor do mundo abrigando, também, suas respectivas culturas. Aliás, isso já não acontecia desde o início do jazz? Sim, de fato, desde o ragtime e o dixieland, o jazz já influenciava compositores eruditos como o russo Igor Stravinsky e Claude Debussy e passou a influenciar cada vez mais na medida em que ia se modernizando, principalmente após o fim Segunda Guerra Mundial, fato que possibilitou com que as nações ficassem mais dialogáveis e viessem a desenvolver, após o “falso silêncio” da Guerra Fria, um fenômeno sócio-político-econômico chamado Globalização. Para ver como o jazz cresceu de forma exponencial no mundo todo desde o final da Segunda Guerra Mundial, basta estudar casos como o fenômeno do crescimento do jazz na região da Dinamarca a partir do ínicio da década de 50, a influencia do jazz na bossa nova e no samba brasileiro na década de 60 e a recente tentativa de apropriação por parte de músicos europeus que, por desprezarem as técnicas e tradições norte-americanas em troca dos conceitos europeus, passaram a se auto-intitular pseudo-inovadores.
O Jazz norte-americano perdeu sua inventividade? O que é inovação?
Mas o que significa, de fato, inovação? Ou melhor: o que significa inovação numa atualidade onde a cerne das artes é o revivalismo às técnicas e conceitos do passado, em detrimento do esgotamento de novas idéias? O conceito de inovação é tão ou mais abrangente quanto o conceito de “improvisação” ou a tal perguntinha clássica “O que é Jazz”. Na concepção de alguns pensamentos mais radicais, inovação é somente algo novo e revolucionário que é capaz de mudar consideravelmente as estéticas artísticas dantes estabelecidas: como o Bebop de Charlie Parker , o modalismo de George Russel e o Free Jazz de Ornette Coleman, transformações que mudaram radicalmente a forma de como compor e tocar jazz. Mas essa forma radical de pensar não é coerente, pois tende a desclassificar os seguidores de Parker, Russell e Ornette mesmo quando esses são dotados de peculiaridades próprias. Ora, isso equivaleria dizer que se os músicos inovadores da história do jazz forem apenas aqueles que impuserem transformações estéticas, desse modo músicos como Ahmad Jamal, Dave Brubeck, Bill Evans, Wayne Shorter e Lee Konitz não podem ser considerados inovadores, pois, apesar das suas peculiaridades, eles não criaram nenhuma transformação radical que mudasse as formas dantes estabelecidas. Mas há concepções mais sensatas que consideram que para um músico ser inovador ele não precisa, necessariamente, revolucionar o jazz, mas ele precisa ser, sobretudo, único e peculiar em suas abordagens, haja vista que as revoluções não ocorrem de músico para músico ou de um dia para o outro: as revoluções, como o Bebop e Free Jazz, por exemplo, foram frutos de diálogos e conflitos entre idéias e estilos pessoais impostos pelos mais variados músicos ao longo dos anos. Portanto, o crítico Stuart Nicholson é totalmente incoerente quando ele diz que o jazz-norte-americano morreu ou que não existem mais inovações sendo produzidas nos EUA pelo fato de Wynton Marsalis ter comandado um verdadeiro revival aos estilos passados e/ou pelo fato de ter ocorrido uma verdadeira padronização do ensino do jazz em grandes universidades, o que na opinião do crítico contribui para que a individualidade e originalidade do músico sejam abafadas. É claro que a preocupação de Wynton Marsalis nunca foi guiar o Jazz para caminhos progressistas ou experimentalistas, já que sua luta consiste em eternizar o jazz enquanto música clássica americana com a mesma concepção de atemporalidade existente no universo da música erudita que valoriza tanto compositores antigos como compositores contemporâneos: mas, não seria essa uma aspiração ousada e, de certa, forma uma evolução? Aliás, partindo do ponto de vista que inovação pode ser um elemento ou característica pessoal do artista, tanto Wynton como seus pares podem ser considerado inovadores. Basta considerar que, indubitavelmente, não há nenhum músico de jazz dos anos 80 e 90 que se equipare a Wynton Marsalis no quesito de composição e técnica, principalmente pela abrangência e personalidade com as quais toca e escreve suas peças: trata-se de composições genialmente elaboradas que não deixam nada a desejar frente à uma complicada composição erudita. Essa tese de que o conservadorismo de Wynton Marsalis não anula sua capacidade de ser criativo ou contribuir para a evolução do jazz foi defendida, recentemente, pelo crítico brasileiro João Marcos Coelho que afirma com grande categoria que o trompetista conseguiu a façanha de direcionar o jazz numa direção iniciada por Duke Ellington e Charles Mingus, revolucionando sobremaneira a escrita jazzística. Diz Coelho: “Cai por terra uma dicotomia histórica entre as músicas de tradição oral (o Jazz) e as de tradição escrita (a música erudita). A partitura na música clássica é o roteiro de uma obra musical ideal, que Platão diria estar no mundo das idéias e que os intérpretes perseguem sem jamais alcançar sua essência. Nas músicas orais, ela é mero lembrete para economizar tempo, como dizia Duke Ellington. Com Marsalis, o jazz chega ao que o francês Christian Béthune chama de ''segunda oralidade''. Ou seja, a partitura passa a ser tão rigorosa e complexa quanto a da música clássica européia branca; mas não é mais o roteiro de uma obra musical ideal à la Platão. Ela fixa os momentos coletivos, mas abre espaço para o improviso contra este pano de fundo organizado. Sem esquecer o swing, é lógico. Porque hoje compositores como Wynton Marsalis e Osvaldo Golijov não têm mais a vergonha que o filósofo Walter Benjamin sentiu nos anos 30, ao se pilhar marcando o ritmo com os pés ao ouvir uma big band: ''Isso não bate com minha educação''. Ademais, há outros rompantes inovadores bem explícitos no jazz norte-americano que foram cruelmente esquecidos ou desprezados pelo crítico Stuart Nicholson em seu livro "Is Jazz Dead? (Or Has It Moved to a New Address)": O M-Base que é um conceito inovador de jazz, surgido através das idéias do altoísta Steve Coleman; as abordagens peculiares de Jane Ira Bloom e Tim Berne, compositores distintos que usam os recursos eletroacústicos de forma bem arranjada; as colagens sonoras de compositores como Dave Douglas, John Zorn e Uri Caine; além das miscigenações entre jazz e hip hop estabelecidas por músicos como Branford Marsalis (que chegou a fundar um grupo do gênero, o Buckshot LeFonque) e Roy Hargroove, trompetista que caminha livremente entre o hard bop e o hip hop com grande peculiaridade. Todos essas abordagens podem ser consideradas inovadoras se partirmos do ponto de vista que tanto o conservador Wynton Marsalis quanto o radical John Zorn, contribuem cada um à sua maneira para a evolução do Jazz. Mas também é certo afirmar que, na vastidão e universalidade do jazz atual, há uma carência de grandes criadores que inventem novas estruturas capazes de revolucionar e reinventar o jazz como fizeram Charlie Parker e Ornette Coleman, pois o fato de Dave Douglas e uma infinidade de músicos usarem recursos eletroacústicos programadas em laptop podem até significar inovação, mas de forma alguma denota que o jazz esteja passando por um momento de grandes invenções e transformações: visto que a música eletroacústica foi descoberta em 1949 na Alemanha e o Free Jazz, estabelecido em 1960, já é uma abordagem tão antepassada quanto o Bebop. Por isso, certas declarações e atitudes de músicos contemporâneos chegam a soar hilárias, especialmente quando eles batem no peito e se autoproclamam inovadores pelo simples fato de impregnar algum aparato tecnológico no momento da performance, como se a eletroacústica e o Free Jazz tivessem sido inventados a dez anos atrás. Enfim, dizer que o conservadorismo de Wynton Marsalis caminha contra a evolução do jazz é tão coerente quanto afirmar que Peter Broztmann é apenas um saxofonista barulhento sem sensibilidade musical, o que, por sinal, chega a ser a principal característica que o coloca no pódio da dita improvisação pós-moderna. E aí surgem outras perguntas relacionadas: quais foram as inovações impostas por Peter Broztmann, considerado um músico top da pós-modernidade? E, aliás, qual a delimitação de contemporaneidade e pós-modernidade na atual esfera das artes?
O jazz norte-americano x avant-garde europeu/ A Arte x Cultura
Aliás, em se tratando do indissociável aspecto cultural, encontra-se outro ponto de discordância que desde o início da década de 80 alimenta os vários conflitos entre os vanguardistas e os neo-tradicionalistas. Essa discordância surgiu, justamente, pelo fato de que o avant-garde – uma tendência européia (originada do Serialismo Integral) que influenciou e foi influenciado pelo Free Jazz - passou a desconsiderar todos os elementos tradicionais do jazz que pudessem engessá-lo dentro de um padrão ou um rótulo específico. Ora, ficou óbvio que ao desconsiderar a importância das referências tradicionais, esses músicos também estariam desconsiderando os aspectos culturais do Jazz que, durante meio século de existência, havia se desenvolvido como identidade cultural genuinamente americana. Ou seja, os músicos vanguardistas passaram a prezar o jazz enquanto veículo artístico pra acomodar seus experimentalismos e, ao mesmo tempo, passaram a desprezar o jazz enquanto veículo ou fenômeno sócio-cultural. Alguns vanguardistas mais serenos como Ornette Coleman, Muhal Richard Abrams e Max Roach, por exemplo, sempre compuseram baseado nas tradições norte-americanas: Ornette Coleman nunca desprezou de todo o blues nem o swing, Muhal Richard Abrams sempre foi um estudioso de técnicas antepassadas como o stride e o ragtime e Max Roach, por sua vez, sempre fora um músico revolucionário ligado à cultura negra e à tradição, chegando a compor obras que foram verdadeiros protestos contra a violação dos direitos dos afro-americanos (como a Freedom Now Suíte composta no início dos anos 60). No entanto, a evolução do Free Jazz mostrou que essas referências tradicionais e sócio-culturais foram quase que totalmente desprezadas, já que os músicos passaram a valorizar, sobretudo, os conceitos impostos pelo avant-garde europeu tais como o serialismo, o abstracionismo, a música concreta e afins. Na década de 70, essas influências européias somadas às influencias da música pop e da world music pressupunham que o jazz poderia “ser qualquer coisa” ou “não ser coisa alguma”: o jazz poderia ser tanto uma sessão de tambores e bricolage tocados pelos membros do Arte Ensemble of Chicago, como poderia ser um melodioso tema pop de Cindy Lauper tocado por Miles Davis, como também poderia ser qualquer seqüência sonora caracterizada por uma improvisação abstrata sem formato rítmico, harmônico ou melódico, como as improvisações dos europeus Peter Broztmann, Han Bennink e Evan Parker. Então, na verdade, com essa abrangência incoerente, o jazz chegava a mais uma de suas crises existenciais: o que era Jazz, de fato? Para os experimentalistas o jazz não poderia ser categorizável enquanto “gênero musical” e não poderia ser formatado por técnicas ou padrões estéticos, mas deveria ser apenas uma “expressão artística”, um ponto de partida com linhas difusas, sem quaisquer limites estéticos ou culturais que o categorizasse (?). Para os estudiosos mais puristas o jazz morria ali: exatamente naquela época.
A preocupação com os limites e representatividade do jazz ficou tão evidente, que a tendência neotradicionalista, surgida a partir de 1980, significou muito mais do que apenas a rejeição da nova geração dos Young Lions contra o abstracionismo e às fusões impostas na década de 60 e 70: através do neotradicionalismo essa geração de “jovens leões” retomou o sentimento de revalorização das tradições e técnicas impostas pelos mestres do passado, resgatando as técnicas de forma audaciosamente impetuosa, reformatando os formatos jazzísticos de outrora e revalorizando, sobretudo, o jazz enquanto fenômeno e identidade cultural afro-americana, tentando mostrar que o conceito de jazz enquanto arte não deve jamais se dissociar do conceito de jazz enquanto cultura americana. Um dos fatos sociais que possibilitou com que essa manifestação ganhasse força e legitimidade foi a desmarginalização e ascensão social do afro-americano nos meios da elite e da classe intelectual, após uma jornada de lutas dos artistas e líderes negros – como, por exemplo, o músico Max Roach, o poeta Gil Scott-Heron e o pastor Martin Luther King – que lutaram contra a segregação e repressão racial: esses protestos e lutas possibilitaram que os negros conseguissem seu espaço e reconhecimento na sociedade. Foi através dessa conquista que, entre meados da década de 70 para o início da década de 80, houve um considerável aumento no número de negros nas grandes universidades, possibilitando o surgimento de uma nova geração de intelectuais que iriam cobrar uma revisão e reconsideração da dívida que os americanos tinham para com a cultura afro-americana como um todo, de modo que até a cultura Hip Hop, uma expressão surgida nas ruas marginalizadas, passou a ser bem valorizada, chegando, inclusive, a trocar influencias com o jazz e a ser um grande produto da cultura de mídia. Esse fenômeno da atualização ou reformatação das formas jazzisticas mais autênticas – um exame que incluiu desde o New Orleans Jazz, passou pelo Bebop e aportou-se nos limites do Free Jazz de Ornette Coleman – chegou a ser chamado de Renascimento do Jazz, e foi creditada à força propulsora do jovem intelectual e trompetista Wynton Marsalis, o mais influente e comentado músico do jazz durante as últimas três décadas.
O protecionismo wyntoniano x a universalização do Jazz
Essa reformatação do jazz enquanto cultura afro-americana, liderada por Wynton Marsalis e defendida por influentes crítico e escritores (como Stanley Crouch que chegou a ser um músico de Free Jazz na década de 70, trabalhando com o saxofonista David Murray), influenciou toda a geração de músicos norte-americanos que caracterizou os anos 80 e 90, e ainda influencia a geração 2000 com um peso que está patente aos olhos de todos os críticos. Em contrapartida à seu sucesso como trompetista, compositor e líder da sua geração, a filosofia de Marsalis é vista como uma espécie de protecionismo artístico-cultural que alimenta as aspirações de estudiosos, artistas e críticos norte-americanos mais puristas e nacionalistas e, por outro lado, conflita com estudiosos e músicos que defendem que o jazz deixou de ser uma música norte-americana para ser uma música universal não-categorizável. Ou seja, para esses estudiosos a supremacia dos norte-americanos sobre o jazz, bem como a institucionalização do jazz em grandes cátedras e universidades acaba cristalizando o gênero ou impedindo sua evolução, o que não é, necessariamente, uma verdade. Aliás, o protecionismo norte-americano em relação ao jazz não é nada maior que o protecionismo europeu em relação ao avant-garde, visto que um tal crítico inglês chamado Stuart Nicholson resolveu escrever um livro, de título sensacionalista "Is Jazz Dead? (Or Has It Moved to a New Address)", onde tenta convencer que a inovação jazzística migrou para outros lugares do mundo, especialmente para a Europa, deixando de considerar como inovação as mais recentes transformações ocorridas em solo americano como, por exemplo, o M-Base de Steve Coleman. De fato, desde a Segunda Guerra Mundial, a propagação do jazz norte-americano se tornou um dos maiores fenômenos mundiais no ramo das artes. Isso equivale a dizer que o jazz, uma expressão musical que teve sua gênese e identidade desenvolvida através da cultura afro-americana, é, atualmente, um fenômeno mundial que está cada vez mais a crescer, o que também equivale a dizer que o jazz - um meio de expressão artística desenvolvido em solo norte-americano - vem influenciando diversas culturas musicais ao redor do mundo a ponto de se instituir em qualquer país do mundo, abrigando, inclusive, características regionais e locais sem, contudo, deixar de ser rotulado como “Jazz”. Percebam, por exemplo, como o jazz recebe denominações que denotam sua capacidade de se nacionalizar aonde quer que seja instituído: existe o jazz brasileiro, existe o jazz europeu, existe o jazz latino e até mesmo o jazz japonês. Ou seja, se o samba e a bossa-nova são frutos da cultura brasileira que já influenciou e influencia diversas expressões musicais ao redor do mundo, o jazz é fruto da cultura norte-americana com um poder de transformação exponencialmente maior, podendo moldar-se a quaisquer características regionais, estéticas e folclóricas. Mas, então, se o jazz pode influenciar e ser influenciado, se o jazz é capaz de se moldar à diversos formatos estéticos e estrangeiros, se o jazz pode adquirir várias nacionalidades, seria, de fato, coerente dizer que o jazz mudou de endereço e deixou de ser uma música genuinamente americana? É contra essa tentativa de “desapropriação” que Wynton Marsalis argumenta, fundamenta e insiste na tese de que assim como a música erudita foi formada por tradições religiosas e populares européias (cantatas, missas, corais, valsas, polcas, mazurcas e barcarolas) e depois passou a moldar-se em vários países do mundo abrigando suas respectivas culturas populares, o jazz norte-americano é, de fato, a música clássica norte-americana formada, também, por tradições populares e religiosas ( blues, gospel, cajun, cultura creole, negro spirituals, marching bands, soul, funky, groove e swing) que passou a influenciar várias culturas de vários países ao redor do mundo abrigando, também, suas respectivas culturas. Aliás, isso já não acontecia desde o início do jazz? Sim, de fato, desde o ragtime e o dixieland, o jazz já influenciava compositores eruditos como o russo Igor Stravinsky e Claude Debussy e passou a influenciar cada vez mais na medida em que ia se modernizando, principalmente após o fim Segunda Guerra Mundial, fato que possibilitou com que as nações ficassem mais dialogáveis e viessem a desenvolver, após o “falso silêncio” da Guerra Fria, um fenômeno sócio-político-econômico chamado Globalização. Para ver como o jazz cresceu de forma exponencial no mundo todo desde o final da Segunda Guerra Mundial, basta estudar casos como o fenômeno do crescimento do jazz na região da Dinamarca a partir do ínicio da década de 50, a influencia do jazz na bossa nova e no samba brasileiro na década de 60 e a recente tentativa de apropriação por parte de músicos europeus que, por desprezarem as técnicas e tradições norte-americanas em troca dos conceitos europeus, passaram a se auto-intitular pseudo-inovadores.
O Jazz norte-americano perdeu sua inventividade? O que é inovação?
Mas o que significa, de fato, inovação? Ou melhor: o que significa inovação numa atualidade onde a cerne das artes é o revivalismo às técnicas e conceitos do passado, em detrimento do esgotamento de novas idéias? O conceito de inovação é tão ou mais abrangente quanto o conceito de “improvisação” ou a tal perguntinha clássica “O que é Jazz”. Na concepção de alguns pensamentos mais radicais, inovação é somente algo novo e revolucionário que é capaz de mudar consideravelmente as estéticas artísticas dantes estabelecidas: como o Bebop de Charlie Parker , o modalismo de George Russel e o Free Jazz de Ornette Coleman, transformações que mudaram radicalmente a forma de como compor e tocar jazz. Mas essa forma radical de pensar não é coerente, pois tende a desclassificar os seguidores de Parker, Russell e Ornette mesmo quando esses são dotados de peculiaridades próprias. Ora, isso equivaleria dizer que se os músicos inovadores da história do jazz forem apenas aqueles que impuserem transformações estéticas, desse modo músicos como Ahmad Jamal, Dave Brubeck, Bill Evans, Wayne Shorter e Lee Konitz não podem ser considerados inovadores, pois, apesar das suas peculiaridades, eles não criaram nenhuma transformação radical que mudasse as formas dantes estabelecidas. Mas há concepções mais sensatas que consideram que para um músico ser inovador ele não precisa, necessariamente, revolucionar o jazz, mas ele precisa ser, sobretudo, único e peculiar em suas abordagens, haja vista que as revoluções não ocorrem de músico para músico ou de um dia para o outro: as revoluções, como o Bebop e Free Jazz, por exemplo, foram frutos de diálogos e conflitos entre idéias e estilos pessoais impostos pelos mais variados músicos ao longo dos anos. Portanto, o crítico Stuart Nicholson é totalmente incoerente quando ele diz que o jazz-norte-americano morreu ou que não existem mais inovações sendo produzidas nos EUA pelo fato de Wynton Marsalis ter comandado um verdadeiro revival aos estilos passados e/ou pelo fato de ter ocorrido uma verdadeira padronização do ensino do jazz em grandes universidades, o que na opinião do crítico contribui para que a individualidade e originalidade do músico sejam abafadas. É claro que a preocupação de Wynton Marsalis nunca foi guiar o Jazz para caminhos progressistas ou experimentalistas, já que sua luta consiste em eternizar o jazz enquanto música clássica americana com a mesma concepção de atemporalidade existente no universo da música erudita que valoriza tanto compositores antigos como compositores contemporâneos: mas, não seria essa uma aspiração ousada e, de certa, forma uma evolução? Aliás, partindo do ponto de vista que inovação pode ser um elemento ou característica pessoal do artista, tanto Wynton como seus pares podem ser considerado inovadores. Basta considerar que, indubitavelmente, não há nenhum músico de jazz dos anos 80 e 90 que se equipare a Wynton Marsalis no quesito de composição e técnica, principalmente pela abrangência e personalidade com as quais toca e escreve suas peças: trata-se de composições genialmente elaboradas que não deixam nada a desejar frente à uma complicada composição erudita. Essa tese de que o conservadorismo de Wynton Marsalis não anula sua capacidade de ser criativo ou contribuir para a evolução do jazz foi defendida, recentemente, pelo crítico brasileiro João Marcos Coelho que afirma com grande categoria que o trompetista conseguiu a façanha de direcionar o jazz numa direção iniciada por Duke Ellington e Charles Mingus, revolucionando sobremaneira a escrita jazzística. Diz Coelho: “Cai por terra uma dicotomia histórica entre as músicas de tradição oral (o Jazz) e as de tradição escrita (a música erudita). A partitura na música clássica é o roteiro de uma obra musical ideal, que Platão diria estar no mundo das idéias e que os intérpretes perseguem sem jamais alcançar sua essência. Nas músicas orais, ela é mero lembrete para economizar tempo, como dizia Duke Ellington. Com Marsalis, o jazz chega ao que o francês Christian Béthune chama de ''segunda oralidade''. Ou seja, a partitura passa a ser tão rigorosa e complexa quanto a da música clássica européia branca; mas não é mais o roteiro de uma obra musical ideal à la Platão. Ela fixa os momentos coletivos, mas abre espaço para o improviso contra este pano de fundo organizado. Sem esquecer o swing, é lógico. Porque hoje compositores como Wynton Marsalis e Osvaldo Golijov não têm mais a vergonha que o filósofo Walter Benjamin sentiu nos anos 30, ao se pilhar marcando o ritmo com os pés ao ouvir uma big band: ''Isso não bate com minha educação''. Ademais, há outros rompantes inovadores bem explícitos no jazz norte-americano que foram cruelmente esquecidos ou desprezados pelo crítico Stuart Nicholson em seu livro "Is Jazz Dead? (Or Has It Moved to a New Address)": O M-Base que é um conceito inovador de jazz, surgido através das idéias do altoísta Steve Coleman; as abordagens peculiares de Jane Ira Bloom e Tim Berne, compositores distintos que usam os recursos eletroacústicos de forma bem arranjada; as colagens sonoras de compositores como Dave Douglas, John Zorn e Uri Caine; além das miscigenações entre jazz e hip hop estabelecidas por músicos como Branford Marsalis (que chegou a fundar um grupo do gênero, o Buckshot LeFonque) e Roy Hargroove, trompetista que caminha livremente entre o hard bop e o hip hop com grande peculiaridade. Todos essas abordagens podem ser consideradas inovadoras se partirmos do ponto de vista que tanto o conservador Wynton Marsalis quanto o radical John Zorn, contribuem cada um à sua maneira para a evolução do Jazz. Mas também é certo afirmar que, na vastidão e universalidade do jazz atual, há uma carência de grandes criadores que inventem novas estruturas capazes de revolucionar e reinventar o jazz como fizeram Charlie Parker e Ornette Coleman, pois o fato de Dave Douglas e uma infinidade de músicos usarem recursos eletroacústicos programadas em laptop podem até significar inovação, mas de forma alguma denota que o jazz esteja passando por um momento de grandes invenções e transformações: visto que a música eletroacústica foi descoberta em 1949 na Alemanha e o Free Jazz, estabelecido em 1960, já é uma abordagem tão antepassada quanto o Bebop. Por isso, certas declarações e atitudes de músicos contemporâneos chegam a soar hilárias, especialmente quando eles batem no peito e se autoproclamam inovadores pelo simples fato de impregnar algum aparato tecnológico no momento da performance, como se a eletroacústica e o Free Jazz tivessem sido inventados a dez anos atrás. Enfim, dizer que o conservadorismo de Wynton Marsalis caminha contra a evolução do jazz é tão coerente quanto afirmar que Peter Broztmann é apenas um saxofonista barulhento sem sensibilidade musical, o que, por sinal, chega a ser a principal característica que o coloca no pódio da dita improvisação pós-moderna. E aí surgem outras perguntas relacionadas: quais foram as inovações impostas por Peter Broztmann, considerado um músico top da pós-modernidade? E, aliás, qual a delimitação de contemporaneidade e pós-modernidade na atual esfera das artes?
13 comentários:
Bem, realmente eu creio na inutilidade neste eterna discussão, que soa como uma desculpa de críticos para justificar o pagamento pelos seus ensaios, resenhas, críticas, artigos e livros. Sobre a "guerra fria" entre o avant-garde e Wynton Marsalis, isso é uma ficção criada pela mídia e crítica especializada.
Numa entrevista recente de Brötzmann quanto esteve em SP, tentaram criar este conflito, fazendo-lhe uma pergunta tendenciosa para extrair uma resposta que realizase este desejo pessoal do entrevistador. Eu conhecí o Brötz e conversei por alguns poucos minutos e ví uma pessoa serena, humilde e atenciosa. Brötz fez questão de frisar o seu respeito e reconhecimento da obra de Marsalis e deu um basta nesta contenda fictícia entre o Neobop e o Free Jazz. Ele disse que só se considera músico de Jazz, simplesmente porque começou tocando no Bop, foi sua formação inicial, ouve, gosta de Coleman Hawkins até hoje, que o influenciou no saxofone. Ele de maneira alguma reinvindica o título de inovador e revolucionário do Jazz, apenas quer se expressar através da música, das artes plásticas com liberdade.
O Free Jazz no seu início teve uma proposta com grande peso social, além da experimentação. Como disse Leroy Jones(Amiri Baraka), era uma forma de dizer: "Deixe-me ser livre!", dos artístas. Mas isso foi para outro patamar, tanto que foi fundada a AACM, onde o preceito era a criação de obras escritas. Músicos como Lawrence "Butch" Morris e Henry Threadgill se dedicam à composição de peças musicais muito mais do que performances de improvisação. O trompetista Bill Dixon desde o início tem a preocupação com a composição, orquestração, tanto que músicos como Giuseppi Logan chegou estudar estes conceitos com Dixon. Roscoe Mitchell escreve peças eruditas além de seu trabalho folclórico com o Art Ensemble. Os saxofonistas ingleses John Butcher e Evan Parker também dedicam parte de sua criação na composição escrita, além da improvisação livre.
O saxofonista e clarinetista holandês Ab Baars também tem trabalhos como o Kinda Dukish-The Music Of Duke Ellington e participou do Monk Project, dirigido por Misha Mengelberg. Han Bennink fez pesquisa e homengeia bateristas como Baby Dodds e Chick Webb, além de seus trabalhos de improvisação livre e com grupos de rock como o The Ex. Cecil Taylor? É se perguntar à ele o que pensa de Monk, Bud Powell. Se houvesse esta guerra entre o avant-garde e o "jazz tradicional" que os críticos inventaram, creio que Taylor não teria aceitado o convite de gravar com Mary Lou Williams.
O cornetista de Chicago que recentemente gravou com Bill Dixon, que é seu mestre declarado, que está ligado diretamente ás artes plásticas, a música experimental, música eletrônica, o avnt-garde do jazz de Chicago, Rob Mazurek, teve incentivo de Wynton, o qual ele tem admiração.
Cecil Taylor em 03/09/1994:
Taylor: Well, I don't know what jazz is. And what most people think of as jazz I don't think that's what it is at all. As a matter of fact I don't think the word has any meaning at all, but that's another conversation...
...obrigado por comentar Akira!
é mesmo, Cecil Taylor quem o diga: o que é Jazz?... para mim a resposta é óbvia: eu acho óbvio que, assim como o samba é uma música com uma estética brasileira, o jazz é uma música com estética americana, o que não siginifica que o samba ou o jazz não venha influenciar outras expressões musicais em outros países do mundo: existe samba e jazz até nos remixes eletrônicos do grupo Jazzanova, um sucesso nos clubes noturnos alemães e ingleses, assim como a própria música eletrônica européia (a dance) seja um fenêmeno pop mundial...
De fato, músicos como Henry Treadgill, Muhal Richard Abrams Butch Morris e Anthony Braxton são compositores que tbm dominam a escrita, apesar de serem músicos que prezam, essencialmente, o free jazz ou livre improvisação: por exemplo, eu não vejo muitas citações especializadas à essa obra de Braxton, mas considero o álbum The Creative Orchestra Music um dos álbuns mais bem arranjados da orquestração moderna. O próprio Henry Treadgill é muito peculiar em sua escrita musical, que, aliás, vou tratar logo de mostrar aqui no blog. Mas em questão de arranjo orquestral, em questão de evoluir a escrita jazzística para os mesmos patamares de compexidade que a composição erudita detém, em questão de aliar a instrumentação à temáticas culturais numa sinestesia entre escrita musical e temática oral, pouquíssimos compositores do jazz podem se equiparar a Duke Ellington que iniciou essa abordagem ou Charles Mingus que foi um seguidor de Ellington. Henry Mancini seria outro gigante da orquestração e da composição escrita, mas suas obras estão aliadas à temáticas do cinema comercial hollywoodiano, não propriamente ao jazz artístico. Já Wynton Marsalis é o mais impactante depois de Charles Mingus porque, através de mais de uma dezena de grandes peças, pôde provar que a escrita e arranjo jazzístico podia ser tão grandioso como, por exemplo, um Concerto nº 1 em Ré Maior de Brahms, uma das peças mais complexas da música erudita escrita no final do século 19 ou, ainda, uma peça de Stravinsky, compositor considerado um dos maiores gênios do arranjo e orquestração erudita do século 20. O compositor e regente Esa-Peka Salonen chegou a dizer que para escrever daquele jeito, Wynton Marsalis só podia ser uma força da natureza, se referindo na grandeza e quantidade de arranjos da obra All Rise, escrita para coro, cantor de ópera, big band, orquestra e solistas de Jazz, gravada em 2001 pela Filarmônica de Los Angeles. Essa bajulação a Wynton Marsalis não foi é a toa: além de Salonen que é um dos maiores maestros, outros maestros mais "míticos" como o alemão Kurt Masur e o japonês Seiji Osawa disseram que Wynton Marsalis era o único compositor da atual música norte-americana capaz de figurar ao lado dos grandes compositores da música erudita tais como Stravinsky e Charles Ives. Eu também incluiria John Zorn que, ao menos para combos menores e peculiares formações camerísticas, tem se mostrado muito genial, um cara muito acima da média.
Já a questão de conflitos entre mainstream x vanguarda, discordo um pouco com vc que seja apenas um ficção de mídia. É claro que os críticos precisam ganhar dinheiro através das polêmicas e eles mesmo são os caras que botam "lenha na fogueira": eles vivem disso. Mas o próprio Wynton Marsalis, com razão ou não, já desceu a lenha em músicos que ele considera hereges para o Jazz - aliás Wynton não poupa nem seus amigos: ela já falou mal de Herbie Hancock que é seu amigo, do seu irmão, de Miles Davis que foi uma influencia dele e tals. Da mesma forma que músicos e bandas como Uri Caine, Bad Plus e Dave Douglas, com razão ou não, já disseram absurdos de Wynton Marsalis. Atualmente, a tensão entre Dave Douglas e Wynton Marsalis foi amenizada: acho que os dois são até amigos, visto que Dave Douglas a muito tempo é um dos convidados frequentes do Jazz at Lincoln Center e o próprio Douglas chegou a dizer que apesar da "concepção antiquada", existem vários vários motivos pelos quais não há como não respeitar Wynton Marsalis (não lembro da fonte, mas na ocasião acho que foi se referindo mais pela técnica e pelo fato de Wynton ter agaranhado fundos milionários para a construção de grandes salas de concertos especializadas para jazz, fato inédito na história, "um milagre" disse Dave Douglas)...mas os conflitos sempre existiram: Miles Davis tinha tanta raiva de Chet Baker que dizia "Até quando eu estava cheio de droga eu tocava mais do que esse branquelo"...(risos)...bom, eu não vejo enormes diferenças entre a técnica de Baker para a técnica de Miles que, num tom racista, dizia que tocava muito mais...
bem, é isso aí...existem até conflitos baseados em preposições racistas, ais quais eu achei melhor nem citar no texto, por serem inúteis em relação ao contexto musical...mas é bom saber que tanto os ditos neo-conservadores como os ditos vanguardistas tentam abafar esses conflitos sendo serenos e cordiais.
Abraços!
Certo Pitta, a parte de Wynton criticar alguns músicos eu realmente não tinha relevado. Na minha opinião particular, acho que ele não deveria perder tempo proferindo o mal dizer, porque simplesmente, pelo menos os artístas da free improvisation, que tiveram mais destaque os ingleses e alemães, além dos outros países europeus, o jazz foi um ponto de partida para outras formas de música. Além dos que não participam do jazz na sua forma mais ligada aos seus fundamentos e isso não quer dizer conservadorismo, mas que realmente participam dos fundamentos para desenvolver novas idéias, eles as vezes possuem um trabalho separado, como o baterista Lou Grassi, que além dos trabalhos ligados ao free jazz, também participa de um grupo de dixieland. O que eu quis dizer é que pelo menos a maioria dos músicos de improvisação livre e free jazz, no qual eu também me enquadro, é que de maneira alguma há um conflito com o Wynton, o neobop, o tradicional.
o wylton marsalis só ta defendendo a cultura do seu país que tava ficando perdida, e ele tá certo
o q acontece é que alguns músico experimentais tem inveja do seu sucesso na mídia e querem participar dos programas do jazz linconl center, mas marsalis que é diretor do jazz lincoln center segue uma parada mais autêntica do jazz, e esses músicos do experimental ñ tem vez lá. acho que é por causa disso que o wylton começou a ser mal falado pra caraio
eu não so fan dele mas adimiro a sinceridade dele e determinancia em defender a cultura afro americana. E nos states ele é tão respeitado que mesmo dizendo que o hip hop tem letras decadentes ele ainda é respeitado pelos cara do rap, tanto que esses dias ele foi convidado pra tocar pro barak obama na posse e pra participar do Kenny Burnns show numa solenidade cheia de rappers e ainda foi aplaudido na entrevista
falow ai
Bela postagem, Vagner. Demonstra o empenho de sua pesquisa sobre a história do jazz. Quanto ao conteúdo, não tenho de que discordar. Entretanto, não querendo bancar o chato, discordo da forma como você resume seu conteúdo. Ou seja, me preocupa muito a forma como abordamos um movimento, um fenômeno cultural tão complexo como o jazz. Você resume a discussão em maniqueísmos do tipo "tradicionalismo" versus "vanguarda", "jazz americano" versus "jazz europeu", "inovação" versus "estagnação" etc. Está certo que isso possa ser um recurso didático utilizado por você para apresentação dos dilemas e das discussões em torno do jazz, mas não contribuem em nada para o nosso debate - a exemplo da questões levantada por Akira quando mencionou a ficção em torno do oposição entre vanguardistas e tradicionalistas.
Podemos contribuir na medida em que enxergamos os hibridismos e determinamos ponto de contato entre tendências, mas jamais contribuiremos separando ou reforçando a separação cada vez mais entre "tendências".
Entendo sua leitura dos fatos ao abordar, por exemplo, a indústria do jazz que se alimenta, além das vendagens de títulos caríssimos, dos festivais promovidos por multinacinais da tecnologia e da informação. É o mercado - esse mesmo alimentado pela crítica apressada.
Mas fico pensando naquele músico de jazz que toca ali na esquina, improvisando ao sax frases que vão de Sidney Bechet a Brandford Marsalis. Nele tais oposições "algo versus algo" não existem, mas coexistem e formam um grande caldo a que nós chamamos jazz.
Valeu, meus caros!
Um abraço,
Thelonious
Bem, o que eu conheço dos músicos experimentais, tanto pessoalmente, quanto em declarações públicas, eu não vejo inveja ao sucesso de MArsalis na mídia, pois os objetivos são distintos. Por exemplo, meus amigos que se encontram em Londres e Holanda, que participam do cenário de improvisação livre, como a London Improvisers Orchestra, não estão preocupados em ter uma grande audiência e repercussão. É claro que eles ficariam felizes em mostrar seu trabalho para o maior número de pessoas possível, mas este não é o foco e muito menos sua motivação. O músico e compositor Fred Frith já se realiza se uma pessoa apenas se emocionar com seu trabalho. Quem foi para o free jazz, improvisação livre, música experimental, se queria sucesso, se equivocou profundamente.
Exatamente, Akira. Toquei algumas vezes em Paris, durante 2007 quando estive por lá. Cada um tem um espaço e se não tiver, acaba conquistando, pois o público também é muito diversificado. Confesso que toca pelas ruas de Paris é tão mais emocionante que tocar, por exemplo, no Caveau de la Huchette ou no Parc Floral e Montsouris.
Berlin também é uma cidade onde todas as tendências possíveis do jazz e da música instrumental se encontram. E todos os estilos, sem exceção, tem espaço.
Aliás, Akira você é de que cidade? De Sampa? Você toca onde?
Abração,
Thelonious
...imagina isso thelonious, se todo chato fosse como tú...rs
bom, é claro que eu usei o esquema de "isso versus aquilo" como uma didática pra mostrar alguns argumentos. Ou seja, não se trata de conflitos no mais profundo sentido da palavra ou com natureza física, como se a todo momento os músicos do avant-garde estivessem denegrindo os músicos do mainstream e vice-versa. Mas não há um só momento da história do jazz em que os conflitos tenham sido apenas uma ficção criada pelos críticos, jornalistas e ensaístas: os conflitos existem, de fato. E o pior: é através desses conflitos é que caminha a tal da evolução do jazz...são conflitos saudáveis, de certa forma!
quanto à mídia, ao público, à valorização do jazz no mercado, é natural que nos EUA a Cassandra Wilson e o Wynton Marsalis sejam ícones da mídia, pois o jazz faz parte da cultura dos americanos, ainda que tenha que a cultura pop e o hip hop sejam culturas mais valorizadas. Igualmente o samba aqui no Brasil: mesmo que ícones pop como Ivete Sangalo e NXzero abocanhe maior parte da consideração da mídia, o sambista Zeca Pagodinho sempre tá lá sorrindo com um copo de cerveja na mão.
...então é aí que entra o aspecto da arte atrelada ao aspecto da cultura: me parece bem óbvio que toda arte aliada a culturas dominantes de um povo, consegue ter uma certa consideração de mídia, o que nem sempre significa que esses músicos que são bem valorizados pela tal mídia estejam compondo em formas comerciais pra agradar ao público. Veja, por exemplo, quão diferentes são Wynton Marsalis de Herbie Hancock: Wynton diz na cara dura que não liga se o público acha o velho New Orleans Jazz ultrapassado; o sexagenário Herbie Hancock em compensação é um jazzista que faz questão de parecer um jovem da música pop. No entanto os dois são ícones na mídia americana.
Daí entra a questão dos músicos de avant-garde: a maioria deles não estão preocupados em atrelar a sua música a cultura nenhuma, por que sempre dizem "vc não pode dizer como a arte deve ser", o que ao meu ver é uma utopia, pois mais cedo ou mais tarde todo meio de expressão por mais espontâneo que seja acaba se cristalizando num estilo definível. Portanto, renegar os aspectos culturais e tradicionais de um povo, a maioria dos músicos de free jazz pagaram o preço de serem conhecido apenas nos meios undergrounds e alternativos, alguns deles até tocando em ruas de Nova York ou Paris. É a consequência natural de uma arte que sempre dependeu das leis de mercado: todas as artes, com maior ou menor grau, dependem da cultura de mídia.
Eu, partircularmente, não considero Peter Broztmann um jazzista, o que não o impede de criar bons trabalhos com novas idéias. Ao meu ver o mercado europeu só rotula certas abordagens experimentais de "JAZZ" para que vendam mais nas prateleiras, porque estéticamente são propósitos e abordagens bem difusas.
Thelonius, obrigado pelo comentário, sempre bom alimentar um debate saudável, que o nosso amigo Pitta procura levantar.
Eu sou de SP, mesmo, andei tocando na av. Paulista aos sábados, na calçada, as vezes bateria e as vezes o clarinete-baixo, quando tava com preguiça de levar a bateria. Depois neste ano que passou eu toquei no Jazz nos Fundos à convite do Panda Gianfratti e o Yedo Gibson, numa noite dedicada ao Free Jazz. Agora estou esperando o Panda voltar da Europa para retomarmos o projeto.
Puxa, Akira, eu estive algumas vezes no Jazz nos Fundos! Capaz da gente ter se esbarrado por lá. Nunca toquei lá, e às vezes que saía pela rua, toquei sax-tenor na República e próximo do teatro municipal. Vamos combinar algo qualquer hora.
Abração.
Grande excerto, Vagner!
O problema, meu caro, é que as vanguardas mais recentes se equivocam ao rotular inovador somente a criação que esteja atrelada à recursos da tecnologia atual, à rebeldia ou à liberdade descompromissada da improvisação livre. Por suas vezes, a eletrificação, a música eletroacústica ou acúsmática, os recursos digitais mais recentes, o laptop, as pick-ups e todas essas tecnologias trouxeram sim inovação à música. Mas no caso do jazz foi um mero adendo timbrístico ou, dizendo de forma simples, foi apenas um ingrediente que proporcionou novas texturas e efeitos sonoros às composições e standards. Esses adendos não mudaram em nada as estruturas rítmicas e harmônicas do Jazz. Estruturalmente falando, o jazz está estacionado entre o legado de Charlie Parker e o legado de Ornette Coleman.
Como professor de música eu também considero que seria uma grande inovação para o jazz se ele pudesse se equiparar à música erudita em termos de composição. Wynton Marsalis, como bem citou, já é capaz disso. Na história da música não existiu nada mais difícil e mais inovador do que os Estudos para piano de Scriabin ou as Sonatas de Rachmaninoff. Quem entende ou estuda música e composição sabe o quão complexos e originais esses compositores foram. Do Wynton Marsalis eu tenho o disco All Rise. É mesmo uma grande peça musical!
Obrigado por proporcionar este tão rico deabate! Seu blog é uma maravilha!
Brandão, falou e disse!
obrigado por nos prestigiar com sua presença!
quanto ao jazz se equiparar com a música erudita em termos de composição, é inevitável...eu mesmo adoro os estudos de Scriabin, adoro Penderecki, Aaron Copland e muitos outros!
abraços!
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