Primeira coisa: um blog, assim como qualquer canal das redes sociais, é sempre um espaço para compartilhar idéias e opiniões -- e temos nossas próprias opiniões, que, aliás, podem não coincidir com as opiniões de todos os nossos leitores. Segunda coisa: este blog sempre teve esse caráter crítico: falar de música por aqui não é apenas afirmar "nossa! que som legal!", mas é, também, mostrar os despropósitos que existem por detrás dos circuitos musicais -- e muitos despropósitos, como tenho dito sempre por aqui, advêm do descaso e preconceito que a mídia aplica à música instrumental; outros, infelizmente, são ocasionadas pelos próprios músicos, principalmente por aqueles que enxergam a arte da música como escrava do seu próprio ego ou como escrava de uma tendência ou padronização mercadológica, algo que é realmente muito empobrecedor. Digo isso porque não tenho "rabo preso" com nenhum músico ou com nenhum estilo específico de música instrumental: quando sou apenas apreciador de música, eu escuto música de forma atemporal, ouvindo tanto o "novo" quanto o "velho"; já quando escrevo sobre a arte da música e analiso seus cenários atuais, eu prezo por tentar descobrir o que realmente está acontecendo de novidade -- e é esse o caráter principal deste blog. Recentemente, porém, cheguei a participar de alguns debates nas redes sociais -- e até recebi e-mails hostis -- onde alguns "camaradas" e "não-camaradas" tentaram desclassificar minhas considerações contrárias à caretagem de uma grande parcela de músicos brasileiros conservadores: assim como no post anterior a este, eu falava daqueles músicos brasileiros que se limitam a tocar jazz, choro ou bossa nova exatamente como o jazz, o choro e a bossa eram tocados nos anos 50 e 60 -- e pior: o fazem malfeito, de forma morna e sem espirituosidade, sem energia ou originalidade alguma. Quem já deu uma circulada pelo circuito de bares de São Paulo sabe que há vários espaços onde só se toca aquele tipo de jazz convencional com aquele swing ou bebop de walking bass manjado ou aquele dito samba-jazz advindo da década de 60: se algum músico ou banda chegar para propor um jazz de estilo mais ousado, de grooves mais inusitados, com composições próprias e com identidade sonora contemporânea, os donos desses bares, os promoters e os produtores desses espaços acabam descartando no ato, pois o que eles precisam para lotar a casa não é uma música que soe novidade, impressione, choque ou traga questionamentos, mas o que eles precisam é apenas uma bossa ou um jazzinho standard ambiente -- é a porra da "música ambiente", algo que nos faz acreditar que esses ditos produtores e "promoters" ou "gerentes" de bares só podem ter tirado essa concepção de "música de fundo" das novelas, onde se ouve canções de bossa, MPB e chorinho como fundo para cenas medíocres. É um aspecto de mercado que acaba ajudando no comodismo daquele tipo de músico parasita: o cara passa quatro anos no conservatório ou na faculdade aprendendo a improvisar sobre temas de Pixinguinha, Miles Davis, Wayne Shorter e Tom Jobim...depois de quatro anos ele vai pros bares e teatros... e continua tocando Pixinguinha, Miles Davis, Wayne Shorter e Tom Jobim do mesmo jeito, sem nenhuma pegada nova, sem nenhuma harmonização nova, nenhum arranjo novo. Ok, esses músicos também tem de existir -- e muitas vezes, tocar só isso é uma forma de sobreviver --, mas isso nunca deveria ser algo quase que totalmente generalizado: senão, a música enquanto arte não evolui, fica no passado; senão, os músicos e bandas que estão criando sons frescos e novos ficam sem seu espaço; senão, o público é descaradamente enganado com versões equivocadas de contemporaneidade.
Arranjo do saxofonista Miguel Zenon para "Supertition", de Steve Wonder
Arranjo do pianista André Mehmari para "Chega de Saudade", de Tom Jobim
Ademais, minha opinião é que todo musico deveria fazer música considerando, além dos seus próprios sentimentos e emoções, os elementos palpáveis que estão à sua volta, o espaço onde se vive e o tempo em que se vive como matérias-primas para sua música. Não é nenhuma demagogia futurista ou vanguardista dizer que todo músico que vive nesta era atual deveria se preocupar em ser original e soar contemporâneo e não uma cópia, um cover, uma reprodução -- não é admissível que um atual saxofonista brasileiro, por exemplo, tenha a presunção de tocar exatamente como tocava John Coltrane nos anos 50 e 60. Devemos, enfim, quebrantar pré-conceitos e os jogar no lixo de vez: há muito tempo que não faz mais sentido achar que só os mestres e a música tradicional se configuram em música de qualidade; que só a música erudita se configura como arte; que só as vanguardas são inovadoras; ou que o mainstream tem de ser um termo comum imposto a todos. Discos de cantores, bandas e músicos brasileiros diversos tais como Curupira, André Marques, Itiberê Orquestra Família, Vintena Brasileira, Michel Leme, João Paulo Gonçalves, André Mehmari, Delia Fischer, Hamilton de Holanda, Mônica Salmaso e outros, mostram que, estilos à parte, nesses ultimos anos realmente tem surgido uma geração de músicos preocupada fazer uma música instrumental brasileira que soe contemporânea, independente se o que se usa é elementos do folclore ou das vanguardas, se são standards ou composições próprias -- assim como os jazzistas americanos estão fazendo coisas novas com a música deles. Isto é, estes mesmos exemplos de músicos e conjuntos brasileiros da nova geração também mostram que pra soar contemporâneo não se tem necessariamente que desprezar a tradição ou a influência dos mestres, mas que é preciso amalgamá-las junto às novas possibilidades: há, enfim, uma demanda e necessidade histórica de termos músicos inovadores, diferenciados, que fujam dos esteriótipos do já manjado samba-jazz ou de quaisquer outros tipos de imitações ou padronizações. Para quem acredita na poética da releitura sobre standards e canções já conhecidas, há, sim, a possibilidade de fazer com que isso soe com linguajar e com arranjos contemporâneos -- vide os vídeos dispostos neste post. Mas o que divulgamos aqui é aquele tipo de músico criativo que dribla os modelos de padronização mercadológica e corre os riscos que estão aí pra ser superados. Ora, mesmo na história da música instrumental brasileira não faltam exemplos de músicos que fugiram dos esteriótipos mercadológicos para criar coisas novas, isso já em tempos passados: vejam só as biografias e as criações de gênios veteranos como Moacir Santos, Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti! Se nos idos anos 60 e 70, o saxofonista e compositor Moacir Santos já soava contemporâneo -- e ainda soa contemporâneo! -- por ter criado grooves inusitados em suas canções e por ter misturado toda sua brasilidade interior com a soul music e com os belos africanismos, então por que a maioria dos músicos contemporâneos tem que ficar tocando standards e canções de choro, jazz e bossa exatamente como se tocava choro, jazz e bossa nos anos 40, 50 e 60? Ok, tudo bem! Convenhamos que música boa, mesmo a conservadora, é música boa e ponto final! Como a música é plural, é preciso, sim, que haja músicos que saibam fazer uso dos standards, tocar choro, jazz tradicional e cantar bossa muito bem, mas isso não pode -- frisando mais uma vez! -- se tornar uma tendência generalizada que sufoque os espaços de quem está propondo música nova. Aliás, um dos propósitos de termos um cenário de pluralidade é esse mesmo: para que se tenha a noção de que há música nova acontecendo, também tem que se ter a música velha pra comparar -- não à toa, há diversos músicos que trabalham com o novo e com o velho. Simples assim! De resto, só basta cada músico buscar sua música interior e arregaçar as mangas para compor coisas novas! Abaixo uma composição do Mestre Moacir Santos, de groove e arranjos orignais, seguido de um vídeo do Vijay Iyer.
Kermis, composição de Moacir Santos para o disco "The Maestro" (Blue Note, 1973)
Arranjo do pianista Vijay Iyer para "Human Nature", de Michae Jackson
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