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As sinfonias e peças camerísticas de Wynton Marsalis, o mais novo "young lion" da música erudita contemporânea!



Como podem perceber, estou investindo parte do meu tempo direcionado em pesquisas musicais para falar, além de jazz e música instrumental brasileira, de música erudita moderna e contemporânea -- e, aí, sub-entende-se que os compositores abordados serão aqueles que caracterizaram certos períodos século XX e aqueles que estão caracterizando o início deste século XXI. Já falei, por exemplo, do americano Frank Zappa, do italiano Luciano Bério e do russo Alfred Schnittke. Neste post falo do famigerado e polêmico Wynton Marsalis, homem conservador, feroz e controverso em suas concepções acerca da autenticidade da tradição americana, mas também considerado um homem talentoso e carismático, por parte da mídia do seu país -- um dos artistas mais adjetivados de todos os tempos, um gênio inquestionável da música americana. Aqui no Brasil, praticamente nenhum crítico, ou jornalista especializado em música, parece estar antenado à esta faceta de Wynton como compositor contemporâneo e muito menos nas recentes novidades relacionadas à música contemporânea e seus compositores -- com exceção de João Marcos Coelho, que é entusiasta da música contemporânea e já escreveu artigos onde reconhece a genialidade do trompetista-compositor neste âmbito, quando algum "crítico" brasileiro resolve falar de Wynton Marsalis é para citar  suas já manjadas gravações clássicas e barrocas ou para criticá-lo no âmbito do seu conservadorismo frente à nova geração de músicos do jazz contemporâneo, como se ele nunca tivesse realizado gravações de sonoridade contemporânea, vide o álbum From the Plantation to the Penitentiary (Blue Note, 2007). Não estou querendo dizer que Wynton está coberto de razão em tudo que já disse ou diz -- porque eu mesmo não concordo com o fato de, por exemplo, ele enxotar para fora do universo do jazz alguns músicos pioneiros do avant-garde ou músicos que realizaram ou realizam fusões as mais diversas, já que a experimentação e a fusão constituem os principais elementos combustores do jazz, dentro, claro, de uma limitação estética --, mas a maioria dos críticos contrários a ele são parciais e fazem críticas tendenciosas, às vezes sem o mínimo de respeito pela concepção artística do músico e, outras vezes, sem o menor conhecimento da obra e de todo seu talento -- ou seja, é aquela coisa: como ele é conservador e detém privilégios midiáticos, naturalmente ele se torna um alvo dos mais hostilizados, já que ele geralmente não contrata músicos que não encarnam o sentimento de valorizar as tradições e a autenticidade do jazz para se apresentar nos palcos do seu Jazz at Lincoln Center, grande centro de jazz do qual é diretor-artístico. Mas a despeito das críticas rasas, o fato é que nunca existiu um músico americano com a magnitude de Wynton Marsalis no quesito de ser considerado um "mito vivo" em dois universos gigantescos da música e no sentido de desdenhar os parâmetros de contemporaneidade, impondo uma carreira focada no princípio da atemporalidade: trompetista de jazz dos mais vulcânicos -- tratado, inclusive, com igual mistificação que os lendários trompetistas da história do gênero: Dizzy Gillespie, Clifford Brown, Lee Morgan e etc --, ele também é um dos mais brilhantes intérpretes de música clássica do século XX, segundo o legendário trompetista francês Maurice André, que, por sua vez, já era considerado pela maioria dos catedráticos o maior dos trompetistas eruditos deste mesmo século -- e este elogio não é gratuito, já que depois de tantos trompetistas e tantas gravações terem mostrado análises requintadas do repertório para trompete, este jovem negro de New Orleans surgiu com gravações ainda mais apuradas, chegando a gravar, com muita técnica e personalidade, praticamente todo o repertório barroco e clássico para trompete, a partir dos anos 80. Não obstante, Wynton  Marsalis também vem provando, desde meados da década de 90, que suas pretensões enquanto compositor também são ilimitadas: dada as recentes circunstâncias na sua carreira  -- e em contrapartida aos detratores que o criticam negativamente (alguns sem conhecimento de causa, como já citado) --  me arrisco a dizer que atualmente há pouquíssimos compositores, tanto de jazz como de música erudita contemporânea, que se equipara à sua proeminência e à sua genialidade. Como assim, Pitta? Além de trompetista, compositor de jazz e intérprete erudito, Wynton Marsalis também compõe música de concerto, música sinfônica, de câmara e tal...??? Sim, compõe e o faz muito bem: tanto, que é apoiado e aplaudido por gente de peso deste glamouroso universo, tais como os maestros Kurt Masur, Esa Pekka Salonen e Simon Rattle, para citar apenas alguns pesos-pesados. Particularmente, eu também não aprecio a faceta de Wynton Marsalis como trompetista-intérprete do repertório barroco e clássico -- já que, assim como prefiro o jazz moderno e contemporâneo, também já não ouço tanto música barroca, clássica e romântica como dantes ouvia, corriqueiramente; prefiro, pois, a moderna e a contemporânea --, mas sou totalmente suspeito quando o assunto é o Marsalis-Compositor: no universo do jazz, eu diria que ele forma um poderoso "triunvirato" com Duke Ellington e Charles Mingus no quesito da evolução da composição escrita, ou seja, eles formam uma espécie de trindade que foi capaz de elevar a escrita jazzística ao mesmo patamar de sofisticação que a escrita erudita; no universo estrito da música erudita eu diria que ele é um dos mais geniais e proeminentes compositores contemporâneos, estando, inclusive, algumas léguas à frente de compositores recentemente consagrados como, por exemplo, Osvaldo Golijov, que ultimamente tem sido tratado, superestimadamente, como se fosse a única grande sensação e esperança da composição contemporânea. A diferença é que Wynton, mesmo sendo autodidata em composição e orquestração sinfônica, é muito mais cerebral, virtuoso, original, exuberante e detalhista que Golijov no quesito de usar os inúmeros artifícios que uma orquestra dispõe -- e Duke Ellington teria sido, junto a Stravinsky (o neo-clássico), a sua principal influência neste sentido. Aliás, é o fato dele não ter formação catedrática em composição e orquestração erudita que o proporciona criar efeitos sonoros tão pessoais, seguindo por um caminho próprio onde a originalidade e a imprevisibilidade  sejam suas principais verves.


 É verdade que o fato de Wynton Marsalis ter se imposto como um grande intérprete do trompete clássico tem tudo a ver com sua fama no universo da música erudita. Também é verdade que os fatos dele ter sido um dos fundadores do milionário programa Jazz at Lincoln Center, ter lançado o Marsalis on Music, programa pedagógico para o ensino musical de crianças e jovens na PBS-TV, e estar ligado à rigorosa Juilliard School também viriam lhe dar um status midiático de escala nacional e internacional. E além desses fatos, há, ainda, as prerrogativas dele ser um conservador e, ainda hoje, ser considerado um porta-voz da cultura americana: se por um lado ele recebe muitas críticas negativas de jornalistas, críticos, compositores e músicos pseudo-progressistas, por outro lado a elite nacionalista e conservadora americana o coloca num patamar inalcançável -- isso ficou evidente quando ele mesmo, por esforço próprio, conseguiu agaranhar investimentos milionários para expandir seu programa Jazz at Lincoln Center, o que acabou resultando na construção do maior centro de jazz do mundo. Mas sabe-se que nos universos do jazz e da música erudita o reconhecimento de um músico e compositor não é algo que se compra com fama e status, mas com mostras reais de genialidade -- ainda mais quando o assunto é o âmbito estrito da composição escrita, onde, naturalmente e inevitavelmente, o compositor não apenas tem de mostrar destreza e conhecimento, mas também passa a ser comparado com gêniais compositores que o antecederam. Na verdade, a ascendência de Wynton como compositor de grandes peças orquestrais começou mesmo no início dos anos 90, quando ele começou a se inspirar na obra de Duke Ellington, através de composições e arranjos para sua big band Lincoln Center Jazz Orchestra, e começou a compor suítes de jazz de grande porte para seu legendário Septeto, tais como Citi Movement (um balé de 1992) e In This House, On This Morning (estreada em 1993 num fervoroso concerto realizado no Avery Fisher Hall no Lincoln Center): estas peças, aliás, voltaram a evidenciar não apenas as preciosidades elementares da tradição jazzística, mas voltaram a evidenciar, também, uma ousadia que parecia extinta no jazz, pois um dos poucos compositores a escrever suites desta espécie foram, justamente, Duke Ellington (vide a suíte Black Brown in the Beige) e Charles Mingus (vide as suites Black Saint e Epitaph). A exemplo de Ellington e Mingus, então, Wynton mostra uma variedade rica de temáticas referentes à tradição do jazz e a tradição do povo americano, bem como mostra toda uma variedade de efeitos instrumentais (uso de surdinas, distorções lúdicas, uso da voz e etc), andamentos, tonalidades (nas quais combina-se consonância com dissonância, usando tanto a harmonia tradicional como a harmonia modal), intensidades, dinâmicas musicais, rítmos (ragtime, swing, bebop e grooves modernos) e arranjos instrumentais inusitados, dentre outros artifícios...,sendo que, para tanto, o compositor chegou a abandonar por completo convencionais estruturas como a A/A/B/A e a manjadíssima sequência tema-improvisação-tema: ou seja, nestas peças o tema se expande em uma cerebral e extensa composição, e o improviso está inserido no meio do arranjo e passa a ser um mero elemento composicional dentre uma infinidade de elementos e recursos existentes, deixando de ser o principal motivo ou objetivo, como dantes era -- aliás, para uma melhor síntese, basta compreender que, nestas suítes, o improviso coexiste com e no meio de toda a parte escrita, e que não pode haver diferenças de complexidade entre o que foi escrito e o que virá a ser improvisado, mas o que tem de haver é a complementaridade de ambos, num fluxo que tem de soar retilíneo e fluído. Embora Wynton estivesse voltando-se para a tradição em termos estéticos, a sua ousadia composicional de então foi considerada original e inédita, sendo, portanto, tão bem reconhecida, entre os meios da crítica e da cátedra americanas, que ele seria preterido para ganhar o cobiçado Prêmio Pulitzer através da peça Blood on the Fields (1997), sua extensa e ousada composição para big band e três vocalistas, uma espécie de spoken word com orquestração baseado numa estória, escrita por ele mesmo, que é ambientada através de temáticas da escravidão norte-americana. A Blood on the Fields foi, então, a primeira composição de jazz a ganhar um Pulitzer; e a partir deste fato, Wynton foi, precocemente, alçado ao topo dos maiores compositores norte-americanos ganhadores deste prêmio: dentre eles, Aaron Copland e Elliot Carter e, mais recentemente, Gunther Schuller e os minimalistas John Adams e Steve Reich.


Maestros ligados à Wynton Marsalis. De cima para baixo: o finlandês Esa-Pekka Salonen, o inglês Sir Simon Rattle e o alemão Kurt Masur.



Eis que iniciava-se, então, a recente mistificação de Wynton Marsalis como o mais novo gênio da música americana. Aliás, antes mesmo da premiação de Blood on the Fields em 1997, um dos primeiros grandes pesos-pesados do universo erudito a reconhecer a genialidade do trompetista-compositor foi o maestro alemão Kurt Masur, o então diretor da Filarmônica de Nova Iorque -- já que, assim como o Jazz at Lincoln Center, esta orquestra também tem sua residência fixada no complexo do Lincoln Center. Em uma entrevista ao jornal Boston Globe, datada de 30/11/2003, Masur disse que a primeira grande impressão a respeito do tino composicional de Wynton Marsalis foi quando ele assistiu, em 1993, a orquestra do New York City Ballet tocar "Jazz - Six Syncopated Movements" (encontrada no álbum Jump Start and Jazz - Two Ballets by Wynton Marsalis), uma peça do jovem compositor escrita para o coreógrafo Peter Martins -- lembrando que o balé moderno é outra arte muito bem explorada no universo "wyntoniano". Ao assistir o balé, Masur começou a cogitá-lo para que ele compusesse uma peça de "jazz sinfônico" para a Filarmônica de Nova Iorque. Kurt Masur conta exatamente como foi o processo de aproximação entre ambos: "I was so impressed. I thought: 'This guy is so talented as a composer, and he can do even more than he already has. Nobody has continued in the way of Ellington and Kenton, writing symphonic jazz'. I called him and he came to my office, and he told me: 'No, because I never learned to compose and orchestrate for the symphony orchestra'. Three years later he called me again and said: 'Mr. Masur, I would like to talk to you. I think I could do a piece for the New York Philharmonic and my band'." O resultado deste encontro foi o nascimento da magnífica peça All Rise, a primeira sinfonia de Wynton, escrita para orquestra sinfônica, big band e coral gospel: a obra foi estreada em 29 e 30 de Dezembro de 1999 com a Filamônica de Nova Iorque, a Lincoln Center Jazz Orchestra e o coral Morgan State University Choir, tendo um imediato sucesso de público e crítica. Em Setembro de 2001, apenas dois dias antes de uma apresentação da All Rise agendada por Wynton e Lincoln Center Jazz Orchestra com o maestro Esa-Pekka Salonen e a Filarmônica de Los Angeles no Hollywood Bowl, os terroristas do "11 de Setembro" atingiram o World Trade Center -- a peça, enfim, foi gravada logo depois, nos dias 14 e 15, tornando-se não apenas uma obra-prima registrada, mas um memorial artístico frente ao acontecido. Embora a Blood on the Fields já tivesse representado sua grandeza e pretenção como compositor -- e por isso ela ganhou o Pulitzer em Musica de 1997 --, foi a All Rise (Sinfonia No.1, para orquestra sinfônica, big band e coral gospel) que representou sua entrada definitiva para o rol dos novos compositores que atualmente são consagrados no universo da música erudita, mais propriamente da música sinfônica -- tanto, que o compositor continuou recebendo encomendas para compor obras para grandes maestros e grandes orquestras: nos dias 19-22 de novembro de 2009 a sua Blues Symphony (Sinfonia No.2 para orquestra sinfônica) foi estreada por Robert Spano à frente da Atlanta Symphony Orchestra; e nos dias 09-13 de Junho de 2010 sua Swing Symphony (Sinfonia No.3, para orquestra sinfônica e big band) foi estreada na Alemanha por Simon Rattle e a Filarmônica de Berlim com sua Lincoln Center Jazz Orchestra, o que só comprova todo o seu prestígio enquanto compositor focado na música erudita atual. Nestas sinfonias suas idiossincrasias -- caracterizadas por seu apreço à tradição de New Orelans e pelo seu estilo original de trabalhar os contrapontos, as sincopações, as tonalidades bluesy e jazzísticas e o arranjo orquestral -- são casadas com influências diversas do mundo do jazz e/ou da música erudita: negro spiritual, o gospel, o swing, o blues, a orquestração lúdica de Duke Ellington (que, na sua big band, gostava de criar efeitos de surdina e outros efeitos para imitar sons de trens, buzinas e animais), o classicismo e romantismo de compositores eruditos europeus (Beethoven e Mahler, por exemplo), as influências da world music (mais propriamente da música tradicional hispânica e afro-latina), a ferocidade cacofônica e o sarcasmo de Charles Mingus, a fase neo-clássica de Stravinsky, o estilo peculiar das melodias e orquestrações de compositores americanos entusiastas do blues e do jazz, tais como George Gershwin, Aaaron Copland e Leonard Berstein, dentre outras influências. Ademais, uma das facetas pessoais de Wynton Marsalis como compositor -- e obras como Blood on the Fields, All Rise e A Fiddler's Tale mostram isso -- é sua predileção por usar a palavra falada (spoken word) através de narradores, vocalistas (de jazz ou de ópera) ou coral de vozes: neste sentido, ele trabalha suas temáticas não apenas através dos sons instrumentais, mas também através da voz,  com verdadeiras estórias contadas, cantadas e narradas.


Para o ouvinte que quer ter apenas o prazer de apreciar estas obras no âmbito auditivo, pouco importa os rótulos -- e essa é uma postura adequada para o tipo de ouvinte que não tem conhecimentos técnicos de música, mas tem os ouvidos apurados para apreciá-la de forma ampla. Mas para o ouvinte que tem alguns conhecimentos técnicos de música e/ou tem pretensões em apreciá-la no âmbito da musicologia, é  muito interessante quando se analisa o processo de composição e a estética musical de tais obras, pois é aí que a coisa complica. Antes de gravar e lançar sua primeira sinfonia, All Rise, Wynton registrou em CD duas peças suas escritas para conjuntos de câmara: uma chama-se At the Octoroon Balls e é seu primeiro quinteto de cordas, composto inspirado nas raizes arcaicas da tradição de New Orleans  e alusiva aos quintetos de cordas de Bela Bartok, o compositor húngaro pioneiro em usar elementos das tradições camponesas e folclóricas na música erudita; a outra chama-se A Fiddler's Tale (escrita para conjunto de câmara e um narrador) e é uma resposta à famosa peça A Soldier's Tale (A História do Soldado), de Sravinsky. Nesta três obras, lançadas em CDs -- All Rise, At the Octoroon Balls e A Fiddler's Tale --, Wynton deixa claro, em sua escrita sinfônica e camerística, suas origens no jazz, no blues e nas tradições arcaicas da cultura americana, principalmente nas tradições de New Orleans. Mas sabemos que esta faceta, de um músico de jazz usar arranjos eruditos ou de um compositor erudito usar arranjos jazzísticos, é algo que já existia desde o início do século XX: compositores como Debussy, Ravel, Milhaud, Shostakovich e o próprio Stravinsky foram entusiastas do jazz e usaram arranjos jazzísticos em algumas das suas obras; e alguns poucos músicos de jazz como Duke Elligton, Stan Kenton, John Lewis (do Modern Jazz Quartet), Charles Mingus e Gil Evans também foram capazes de usar arranjos eruditos em muitos dos seus discos, colaborando para o surgimento de uma linhagem independente que o compositor e arranjador Gunther Schuller chamou de "Third Stream". Então qual seria o rótulo a ser usado para estas obras de Wynton Marsalis? Jazz Sinfônico, Jazz de Câmara, Third Stream ou apenas Música Erudita Americana Contemporânea? Alguns jazzófilos mais antenados sabem que o próprio Wynton tentou impor uma idéia nos anos 90 de que o jazz deveria ser considerado a música clássica da América -- "Jazz is America's Classical Music", teria dito ele --, o que gerou críticas e contestações polêmicas de ambos os lados: do jazz e da música erudita. Em partes, eu discordo desta filosofia, pois o jazz é um gênero que, apesar de usar elementos da música erudita em vários momentos da sua história, impôs suas próprias tradições e suas próprias fórmulas estéticas: a improvisação, os inúmeros grooves inspirados pela cultura popular afro-americana, as formações instrumentais, o diálogo sonoro entre instrumentos...tudo isso foram surgindo independente da cultura erudita ocidental. Mas, por outro lado, considerar que o jazz é a maior e mais natural influência para a chamada "Música Clássica Americana" -- e acredito que foi esse sentido que Wynton quis enfatizar -- não é errado: de Charles Ives, passando por Aaron Copland, Gunther Schuller e Leonard Berstein, até chegar em Steve Reich, é impossível falar da formação de uma "música erudita americana" sem considerar que todos seus compositores se inspiraram em elementos jazzísticos -- afinal, por impor uma arte de música instrumental muito elaborada e virtuosística, o jazz influenciaria não apenas os compositores americanos, mas também muitos dos europeus. Então, na minha opinião, considero que Wynton Marsalis, nesta sua faceta de compositor, está fazendo um caminho independente de fundir o jazz e as tradições americanas com a escrita e o arranjo eruditos, podendo ser rotulado tanto como um representante da autêntica "Música Erudita Americana" como um representante da linhagem Third Stream -- daí porque considero que ele representa a continuidade e a natural evolução tanto das linhagens iniciadas por jazzistas como Duke Ellington, Stan Kenton e Charles Mingus, bem como das linhagens mais eruditas iniciadas por George Gershwin, Aaron Copland, Leonard Berstein e o próprio Gunther Schuller, esse ainda vivo e ativo. Se fosse para resumir através de uma rotulagem no âmbito estritamente erudito, poderíamos dizer que Wynton é um compositor representante do atual classicismo pós-moderno, podendo ser uma espécie de neo-romântico também, haja vista o seu gosto pelo romantismo e seu distanciamento, assim como o da maioria dos compositores contemporâneos, em relação às linhagens do vanguardismo e do experimentalismo impostos por conceitos ruptores e rebeldes do século XX, tais como a "música dodecafônica" (criada por Schoenberg), o serialismo integral e a música eletroacústica (representadas por compositores como Boulez e Stockhausen) e a música aleatória (representada por John Cage). O fato principal a considerar, independente de rótulos, é que Wynton Marsalis,  o ex-young lion que nos anos 80 foi considerado o principal responsável pelo fenômeno do "Renascimento do Jazz" -- já que o fusionista Miles Davis tinha decretado a "morte" do gênero em sua forma acústica, tal como ele tinha se imposto na primeira metade do século XX --, agora também pode vir a ser considerado não apenas a mais proeminente promessa da atual música erudita americana, como também o mais novo "young lion" da música erudita contemporânea no âmbito universal. Num eventual universo erudito protagonizado pelas linhagens"wyntonianas", um músico teria de ser um "super músico" (!), pois ele teria de conhecer profundamente os dois maiores idiomas da arte da música  -- o jazz e a música erudita -- para executar obras destas estirpes. Será essa uma evolução a ser alcançada no futuro ou seria pensar alto demais? Para a ousadia ilimitada de Wynton Marsalis, essa é uma expectativa totalmente possível -- afinal, ele mesmo é um exemplo de músico que domina profundamente estes dois maiores idiomas da arte da música.

A obra em registros - Breves notas.


All Rise (Symphony Nº 1, for orchestra, jazz big band and choir)

 The Halls Of Erudition & Scholarship - (Movement 8)/ El'Gran' Baile De La Reina - (Movement 9)

O célebre compositor austríaco Gustav Mahler explicitou um conceito a respeito da sinfonia que ficou bem famoso no universo erudito: " A sinfonia deve ser a forma mais extendida da música clássica, ela deve ser um mundo, ela deve abraçar a tudo". All Rise, escrita para big band de jazz, coral de vozes e orquestra sinfônica -- e já bem distante do conceito e da forma das sinfonias clássicas, diga-se de passagem -- é uma sinfonia constituída de 12 movimentos independentes, cada um alusivo à uma temática diferente, à uma história, à um momento diferente que ilustra a cultura musical que permeia a América -- e, portanto, é uma sinfonia que encarna o citado espírito "mahleriano" neste sentido de expressar um amplo universo de temáticas, rítmos e sons em relação ao contexto americano. Para entender um pouco como funciona a miscelânea wyntoniana basta observar alguns elementos sonoros de alguns poucos movimentos de All Rise: é como se Wynton Marsalis quisesse expressar a junção das sonoridades da "velha" música erudita ocidental com as sonoridades da "nova" América dos séculos XIX e  XX, tal como aconteceu na formação de toda a cultura musical americana. O primeiro movimento, "Jubal Step", ja é bem original e idiossincrático: ele começa com orquestra e coral (as vozes cantam "Ah-Zum" e realizam inflexões em torno dessas sílabas), ambos em rítmo de marcha; depois há uma breve sessão dançante protagonizada pelas cordas; em seguida, um trio de flauta, clarinete e fagote precede a volta da orquestra e coral (dessa vez, os homens cantam "M-m-m-m" e as mulheres cantam "Da-da-da-da"); e antes do fim triunfual, há o breves espamos jazzíticos da big band  na levada de um rítmo latino chamado "cáscara" -- durante todo este trajeto sonoro, escalas de blues e escalas modais, às vezes sobrepostas, dão os tons de todo o colorido harmônico. O terceiro movimento, "Go Slow (But Don’t Stop)", encarna uma clássica valsa vienense, que é tocada pelas cordas: no meio dela há momentos jazzíticos protagonizados por um piano-trio e, logo depois, por um saxofone lírico numa atmosfera de balada romântica. O quinto movimento, "Save Us", é um triste lamento inspirado no blues e nos "negro spirituals", mas ele inicia-se numa chamativa bem viva de tambores e tamborins em pergunta e resposta (um pouco alusiva à percussão brasileira das escolas de samba, diga-se de passagem); em seguida surgem gritos pavorosos, um desenvolvimento orquestral, solos líricos de trombones improvisando sobre escalas modais e o coral em ambiente fúnebre, também em pergunta e resposta: sobre um fundo de vozes, uma cantora de ópera canta  "Save Us"  e "Save Us, Oh Lord", enquanto um cantor (um tenor) responde cantando “For we know not what to do.”; por fim, a big band de jazz surge numa linguagem bebop e com solos modais e efusisvos de trompete, deixando a entender, portanto, que depois da crise e desventura, o Senhor Deus surge com a esperança e alegria. O sexto movimento, "Cried, Shouted, Then Sung", evoca um funeral de New Orleans e um culto gospel de luto no estilo tradicional das igrejas batistas afro-americanas, só que as evocações (sermão, coro e clamores) não são interpretadas por vozes humanas, mas pelo trompete, trombone e tuba; depois dessas evocações, aí sím é que entra o coral cantando um hino fúnebre. O nono Movimento, "El 'gran' baile de La Reina", evoca um momento festivo, romântico e dançante um tanto caliente: para tanto, Wynton escreveu partes inspiradas em danças latinas -- desde a milonga e o tango argentino até o mambo afro-cubano e o flamento espanhol -- e as juntou numa fantasia explendorosa. O décimo movimento, "Expressbown Local", expressa os sons dos trens que atravessam o sul dos EUA: numa orquestração lúdica bem alusiva ao estilo de Duke Ellington, protagonizada pela big band Lincoln Center Jazz Orchestra, Wynton evoca o barulho dos trilhos, da buzina do trem e o seu barulho em movimento -- é um momento divertidíssimo que engloba desde o dixieland, passa pelo swing e aporta-se no moderno bebop. Então, como percebe-se, All Rise é uma sinfonia, no melhor estilo "third stream" e neo-clássico contemporâneo, que abrange vários momentos e várias tradições e, portanto, várias estilos e sonoridades musicais: as orquestrações e rítmos intercalam ragtime, marching band, coral gospel, swing, bebop, brass band, orquestra sinfônica, combos de bebop e etc; e os estilos tradicionais evocados abrangem negro spirituals, gospel, dixieland, blues, swing inspirado em Duke Ellington, o bebop de Charlie Parker, o espiritualismo e o jazz modal de John Coltrane, ópera, valsas clássicas e, claro, música erudica com inspirações diversas que vão desde Bethoven e Aaron Copland até Igor Stravinsky. O álbum All Rise (Sony Classic, 2001), gravado com o próprio Wynton Marsalis liderando a Lincoln Center Jazz Orchestra e com o maestro Esa-Pekka Salonen à frente da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, pode ser comprado via site da Amazon.


A Fiddler's Tale

 Dois fragmentos: "Happy March/ "The Devil's Dance"

A peça nasceu de uma colaboração entre Wynton Marsalis com os músicos do Chamber Music Society of Lincoln Center. A idéia foi escrever uma paráfrase em resposta à legendária obra teatral e camerística "A Soldier's Tale" (A História do Soldado) de Ígor Stravinsky, o que resultou nesta peça chamada "A Fiddler's Tale" -- curiosamente, ambos, Wynton e Stravinsky, tinham 36 anos quando escreveram as respectivas peças. Ao escrever "A Fiddler's Tale, Wynton seguiu a mesma formação instrumental  e a mesma estrutura da obra original, mas com a composição musical e a história diferentes: na história original, escrita pelo suiço Charles-Ferdinand Ramuz, trata-se da trama de um soldado que negocia com o diabo seu violino em troca de um livro que prevê o futuro, enquanto que nesta história, escrita por Stanley Crouch, trata-se da trama de uma mulher, também violinista, que vende sua música à um certo "diabo" chamado pelas iniciais "BZB" -- um executivo de uma gravadora -- em troca de fama e sucesso comercial; da mesma forma, a música desta peça até preserva certos elementos rítmicos e dinâmicos da peça original, mas aqui o trompetista se inspirou em rítmos do jazz e das tradições folclóricas de New Orleans. Assim como A História do Soldado foi escrita para um septeto formado por instrumentos de todos os naipes instrumentais de uma orquestra, A Fiddler's Tale mantém a configuração original com o próprio Wynton Marsalis (trompete), Kavafian (violino), Stefon Harris (percussão), David Shifrin (clarinete), David Taylor (trombone), Edgar Meyer (baixo) e Milan Turkovic (fagote). Quem narra a história, o "spoken word", é o ator André De Shields. Para quem quiser adquirir apenas o material instrumental, sem as partes narradas, basta comprar o CD do quarteto At the Octoroon Balls, comentado abaixo.


At the Octoroon Balls (String Quartet Nº 1)

5º Movimento - Hellbound Highball (Harlem's Quartet)


Dois mestres supremos da música erudita influenciaram Wynton Marsalis nesta sua primeira composição para um quarteto de cordas: um foi o húngaro Bela Bartók (1881-1945), o principal e um dos primeiros compositores a dar importância para o estudo das músicas étnicas, folclóricas e camponesas, chegando a fundir, em sua sua composição vanguardista, vários elementos das tradicionais músicas romena, búlgara, hungara, croata, sérvia e etc; e a outra influência foram os quartetos de Antonin Dvorák (1841-1904), um pioneiro das fusões de música erudita com a música folclórica dos eslavos. Mas, independente em quem ele se inspire, Wynton sempre soa Wynton: o que ele fez aqui em At the Octoroon Balls foi compor uma peça moderníssima unindo espasmos jazzísticos, ecos vanguardistas da música erudita do século XX com o que que há de arcaico e rústico no blues, cajun, spirituals, ragtime, cakewalke e música creole,  rítmos e estilos musicais presentes na cultura afro-americana a partir do final do século 19, principalmente em New Orleans, onde foi o berço do Jazz. A partir daí, Wynton criou arranjos muito inusitados e peculiares, trazendo para a pauta musical expressões e notações que possibilitassem com que os intérpretes produzissem e reproduzissem as temáticas, os rítmos sincopados, a instrumentação "suja", "crispada", "rústica", bem como todos os efeitos que ele quis expressar: passagens saltitantes inspirados no ragtime, rangidos, trôpegos polirrítmicos, intrincadas conversações contrapontísticas, efeitos que fazem alusão aos barulhos dos trens do sul dos EUA,  lamentos inspirados no blues, dentre outras sonoridades, ritmos e efeitos. Assim como Bartók pesquisava as sonoridades das canções folclóricas e camponesas húngaras e romenas para usá-las como inspiração em suas obras modernas e vanguardistas, Wynton inspirou-se na cultura e comunidade creole de New Orleans do início do jazz com seus prostíbulos (chamados "Balls") e suas prostitutas creoles (chamadas "Octoroons"). Trata-se de um excelente exemplo de como o compositor é capaz de compor uma obra coesa e coerente fazendo uso de todo o hibridismo que caracteriza as raízes das tradições musicais americanas. A gravação desta composição foi realizada pelo String Orion Quartet e lançada pelo selo Sonny Classical. As partes instrumentais de "A Fiddler's Tale" estão inclusas no CD.

2 comentários:

Érico Cordeiro disse...

Olá amigo Vagner,
Gostaria de convidar você e seus leitores para as comemorações do 2º aniversário do Jazz + Bossa + Baratos Outros (www.ericocordeiro.blogspot.com).
Abração!

Vagner Pitta disse...

Olá querido Érico, quanto tempo heim!


Sim, vou dar uma olhada no desafio proposto!

Abração!

Outros Excelentes Sites Informativos (mais sites nas páginas de mídia e links)