O blog Farofa Moderna está indo para o seu 4º aniversário. No início, a minha intenção era abordar o jazz a música instrumental brasileira e a world music, esse um gênero rico de sonoridades instigantes que abrange a música étnica ou outros estilos musicais que dão ênfase em fusões com as várias sonoridades folclóricas do mundo. Mas, de forma natural, outros assuntos como artes, livros, música popular e experimental também foram sendo abordados ocasionalmente ou solicitados pelos próprios visitantes do blog. Pois bem, agora chegamos na versão definitiva de como deverá ser nossa abordagem. Como nos falta tempo para "cair de cabeça" numa pesquisa musical em tempo integral, -- já que é impossível pesquisar toda a infinidade de novos sons que as mentes criativas do planeta nos proporciona --, vamos fechar o cerco e abordar a música contemporânea como um todo e de forma mais genérica, sendo que a atenção que era dada especificamente à "world music" será substituída pela ênfase em mostrar mais a música popular brasileira de hoje em dia, a chamada MPB contemporânea. Há um grupo seleto de cantores que estão fazendo uma MPB de muito bom gosto e qualidade musical: portanto, a nossa ênfase será dada a cantores e compositores que unem o requinte poético impresso no canto à música bem arranjada e bem tocada -- vejam que Elis Regina, por exemplo, foi uma cantora de MPB -- amplamente apreciada pelas massas, diga-se de passagem -- que se conectou totalmente com os avanços da música instrumental, dos aos 60 e 70, nas suas formas mais autênticas, sem economizar arranjos e improvisos em suas interpretações. É esse tipo de MPB -- que alia a sofisticação harmônica, melódica e rítmica em torno da fusão entre canção e instrumental -- que deveremos mostrar por aqui. Aliás, eu considero que a MPB é um gênero que, embora ainda tenha uma certa sustância de artistas veteranos em atividade e uma nova leva de outros artistas contemporâneos, ela está sendo escanteada pela exposição exarcebada de gêneros relacionados a música de entretenimento e levada à condição elitista no que se diz respeito ao seu alcance de público e de mídia. Mas vamos ao assunto deste post, pois já falei deste aspecto aqui e aqui. O mais novo lançamento da MPB que mostra esse raro requinte entre a canção e o arranjo instrumental é álbum "Presente", da pianista Délia Fischer.
Delia Fischer, nascida em 1964, é pianista, compositora e arranjadora e, agora, lança este "Presente", seu primeiro album com ênfase na canção popular. Mas não se enganem: apesar dos poucos álbuns lançados, estamos diante de uma instrumentista de primeiro nível que parece considerar a evolução da arte musical acima de alguma fama ou ganho comercial -- uma autêntica artista. Tendo tido uma educação bem direcionada -- considerando que ela estudou com mestres supremos como Luiz Eça e Guerra Peixe --, Delia iniciou sua carreira em meados dos anos 80 com o seu Duo Fênix, juntamente com Cláudio Dauelsberg, gravando nessa fase os discos "Duo Fenix" e "Karai-Ete". No exterior, atuou nos clubes New Morning, em Paris (França), e Brottfabrik, em Sttutgard (Alemanha), além de ter participado dos festivais de jazz de Montreux (Suíça) e de Sofia. Após essa fase com o duo, já no início dos anos 90, a pianista passou a realizar diversos workshops no Brasil e acompanhou grandes músicos e cantores como Toninho Horta, Ed Motta, Robertinho Silva, Pascoal Meirelles, Dom Um Romão, Nivaldo Ornelas, Marcos Ariel, Nico Assumpção, Baby do Brasil e Jane Duboc, entre outros. Inclusive, por seu talento e acesso à rede de músicos influentes, ela participou de eventos como "Tributo a Elis Regina", em 1997, e "Brasil 500 anos", em 1998, realizados pela Rede Globo. Em 1999, gravou o CD "Antonio", lançado nos mercados norte-americano e europeu pela gravadora Carmo-ECM, de Egberto Gismonti. O disco, composto de músicas de sua autoria, contou com a participação de instrumentistas fantásticos como o violonista e guitarrista Romero Lubambo, o contrabaixista Nico Assumpção e o saxofonista Nivaldo Ornelas, um dos expoentes do legendário movimento mineiro chamado Clube da Esquina. Agora, após um hiato de uma década sem lançar discos, a pianista alcançou um novo ápice em sua carreira: em 2009, ela foi premiada no XXI Prêmio Shell de Teatro na categoria Música, pelos arranjos vocais e instrumentais para o musical “Beatles num céu de diamantes”, de Charles Möeller e Claudio Boelho; além disso, acaba de lançar o interessantíssimo álbum "Presente", um misto de canção popular e arranjo instrumental, que deverá ser bem resenhado pela maioria dos especialistas que amam esse lado mais criativo da música brasileira.
O álbum "Presente", lançado pelo selo Dubas, traz ao menos três fatores como excelentes atrativos para que o apreciador de jazz, MPB e música instrumental compre-o: um deles é o time de convidados especiais como Hermeto Pascoal, Ricardo Silveira, a diva do jazz escandinavo Lisa Nilsson, Egberto Gismonti e Ana Carolina; o outro deles é o fato de que esse é o primeiro álbum onde a pianista se aventura, também, na condição de cantora; e o outro é o próprio conteúdo musical: as composições e os arranjos que não só foram bem construídos em suas estruturas técnicas, mas também procuram evidenciar uma música que une aspectos da tradição brasileira com os da música contemporânea, imprimindo um frescor e uma identidade preponderantemente tupiniquim. Constituído de doze canções, todas compostas por Delia com com a colaboração dos parceiros Thiago Picchi, Sergio Natureza e Camila Costa nas letras, o álbum "Presente" não é um daqueles onde só há um, dois ou três destaques: todo o álbum é muito bem arranjado e todas as canções apresentam o seu requinte especial. Contudo, imprimo aqui impressões sobre algumas das canções que se encaixaram dentro da minha preferência:
A segunda faixa, "Das Plantas", traz um rítmo de samba em um arranjo a La Hermeto Pascoal, em compasso ímpar, com a psicodelia tênue de um piano Rhodes, sutis efeitos eletrônicos, sons de bricolage e o próprio Hermeto usando a voz borbulhante em cópo d'agua e a escaleta pra temperar o molho. A terceira faixa, "Aluvião", expressa um lirismo lindamente nordestino, tendo como ponto alto o casamento entre a sonoridade do violino de Pedro Mibielli e do violão de Ricardo Silveira. A quarta faixa, "Nascimento de Vênus", é uma bela balada lenta com um instrumental de piano-trio e arranjo de cordas, tendo a participação da cantora escandinava Lisa Nilsson cantando em sua língua nativa, sueco. A sétima faixa, "Mercado", é o ponto alto e expressa ainda mais veemente o leque contemporâneo de sonoridades que Delia quis imprimir: um groove de pegada bossanovina liderado pela bateria de Márcio Bahia, o já citado piano rodes, violino, vozes em efeitos radiofônicos (para passar a atmosfera da "feira" citada na letra), scratches em toca discos e uma pegada mais na levada do pagode nordestino no refrão -- é uma canção de letra politizada, de uma poética figurada em torno dos varios sentidos de feiras humanas, "da...feira que vende sexo, que vende a torto e a direto, que vende todo o respeito, que vende a alma". A oitava faixa é um rápido interlúdio totalmente instrumental, sem canto vocal: Délia no piano acústico e Márcio Bahia na bateria quebrando tudo. Por fim, a faixa-título "Presente" encerra com chave de ouro com a participação de ninguem menos que Egberto Gismonti: a canção traz o uso intimista do canto vocal, piano acústico e um violão de 12 cordas em sonoridade bem "folk", deixando parecer que Gismonti trouxe uma pitada da sonoridade que trabalhou com grande sucesso em suas gravações para a ultra-moderna gravadora ECM.
Sem querer aderir ao vício da comparação estética que infesta as resenhas de crítica musical, não seria exagero dizer que esse novo projeto de Delia Fischer tende a contribuir para alimentar um cenário criativo dentro da nova MPB baseando-se em ícones como Elis Regina, Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, impondo uma nova modernidade e resgatando o requinte, criatividade e a identidade da autêntica música popular brasileira com toda sua instrumentação e sua poética rebuscada -- e isso é certeza mesmo que a pianista não tenha sido uma cantora convencional com grande fama na mídia. O que importa é o agora, pois ele pode ditar o futuro: e o agora foi presenteado com este álbum, "Presente", de Delia -- um risco que a pianista correu e que acertou ao fazê-lo. Apreciem sem moderação.
2 comentários:
A palavra Presente define muito bem este material de importância ímpar na história da música brasileira atual. No sentido filosófico, presente é a única coisa que é real, o agora, o passarinho que canta na goiabeira, o coração pulsando nas veias, o beijo na paz do amanhecer...esta expressão feliz da Délia, é um presente para dar-se a si e às pessoas queridas as quais gostaríamos de dividir tamanha alegria, salve Délia, obrigado pelo Presente. Abço Seu Juba
Estou ouvindo o CD da Délia Fischer na página do UOL,
que maravilha de material sonoro mesmo viu
A cantora nos comovecom um sentimento que a muito tempo a MPB parecia ter perdido, além disso tem o fato de soar contemporâneo mesmo como bem diz o texto
sucesso ao blog e à Delia
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