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A música de Wolfgang Rihm, um mestre em usar o subjetivismo como matéria-prima da criação!


Voltando a falar de música erudita contemporânea -- lembrando que recentemente pincelei, por aqui, obras e momentos biográficos de compositores como os americanos Frank Zappa e Wynton Marsalis,  o italiano Luciano Berio e  o russo Alfred Schnittke --, neste post vos apresento o genial compositor alemão Wolfgang Rihm, o qual tem preenchido alguns dos meus momentos noturnos  e domingueiros de pesquisa sonora. No Brasil -- talvez por falta de investimento (justificativa que não se deve aceitar, ante o descaso e a corrupção encrustados no nosso sistema) e/ou pela falta de apreço e conhecimento dos nossos curadores, produtores e chefes de orquestras -- não há uma programação regular, na mídia e nos palcos dos nossos teatros e casas de concerto, para apresentar ao ouvinte obras que dizem respeito ao nosso tempo; não há um horizonte que apresente às pessoas a música que está sendo produzida no âmbito contemporâneo, pós-moderno -- ou seja, para justificarmos que prezamos a cultura e a arte (ou que não a desprezamos totalmente), estamos sempre a reproduzir o classicismo passadista que afasta os jovens e enclausura os mais velhos: é mais uma mediocridade no mosaico de mediocridades tupiniquins. Então, daí tiramos a explicação do porquê de compositores contemporâneos geniais como Alfred Schnnittke e Wolfgang Rihm, dentre tantos outros, não serem divulgados por aqui -- aliás, nem nossos próprios compositores contemporâneos recebem o apoio que precisam para desenvolver a arte da música. Na Europa, contudo, a tradição de cada geração apoiar seus compositores contemporâneos ainda se mantém firme (mesmo em tempos de crise econômica), mais ou menos como era na época da música clássica e romântica, onde um compositor contemporâneo como Beethoven, por exemplo, recebia todo o apoio necessário do ducado e da corte real: não à toa, o prolífico Wolfgang Rihm é um dos compositores europeus que mais receberam e recebem encomendas para compor para grandes orquestras, além de comissões, honrarias e prêmios por sua música. Nascido em 1952, na cidade de Karlsruhe (onde ainda reside), Rihm é considerado um dos principais compositores europeus das últimas décadas, reconhecimento que está além do fato dele ter sido o representante maior do movimento pós-serialista conhecido como "Nova Simplicidade" nos anos 70 e 80.


 Morphonie (1972)  para quarteto de cordas e orquestra (fragmento)

Wolfgang Rihm estudou com grandes mestres e compositores alemães -- Eugen Werner Velte (na Hochschule für Musik de Karlsruhe, onde ele substituiria o próprio mestre), Wolfgang Fortner e Humphrey Searle -- e concluiu seus estudos em meados dos anos 70, conseguindo a façanha de ser notado como um proeminente compositor já de imediato, quando, em 1974 estreou sua composição Morphonie – Sektor IV no festival Donaueschinger Musiktagen. Antenado com a vanguarda da época, que ainda se mantinha sob as influências de serialistas e experimentalistas como Luigi Nono, Morton Feldman, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, Rihm abdicou-se de seguir à risca o caminho traçado por eles para iniciar sua carreira sob um forte desejo de exprimir influências oriundas da veia vienense -- leia-se da música genuinamente germânica, partindo de Beethoven, passando por Mahler até atingir Schoenberg, Berg e Webern --, mas de uma forma neo-romântica, neoexpressionista, algo que lhe soasse próprio, sem toda aquela intrincância e conceitualismo os quais marcaram a música do pós-guerra, algo que ele realizou através de explorar sua própria subjetividade e, com ela, contornar os elementos de vanguarda de forma maleável e expressiva: seus exercícios, para tanto, foi instrumentar as peças de piano de Schoenberg  e estudar os aforismos de Webern, acrescentando em sua bagagem influências de Feldman e Stockhausen;  e, também, é nessa época -- e marcado por esse sentimentalismo e por essa subjetividade -- que ele compõe suas três primeiras sinfonias. Mesmo sendo muito jovem (com vinte e poucos anos), a repercussão das suas obras lhe faria ser requisitado para ministrar palestras e aulas em Karlsruhe, sua cidade natal; não obstante, em 1978 ele também foi requisitado para dar instruções nos famosos cursos de verão de Darmstadt -- que ele tinha assistido desde 1970, onde entrou em contato com Stockhausen, outro dos seus mestres -- e, em 1981, foi preterido para lecionar na Musikhochschule em Munique. Em 1985, ele assumiria o posto que fora do seu próprio mestre Eugen Werner Velte, recebendo a cadeira de composição na Hochschule für Musik em Karlsruhe. Ora, não é à toa, portanto, que Rihm seja uma figura muito conhecida em toda a Alemanha, especialmente em Karlsruhe, cidade fronteiriça com a Suiça e França, onde é conhecido até pelos taxistas como "Professor Rihm", já que não dirige: vindo de uma família modesta, ele nasceu e cresceu na cidade, cantou em corais da cidade, tocou em órgãos das igrejas locais, ensina no conservatório da cidade e o apartamento onde ele vive ainda é perto da casa de membros da sua família, os quais ainda vivem na cidade.

Stockhausen



Anton Webern


















Como já citado, a música de Wolfgang Rihm, além das muitas idiossincrasias do compositor, recebe influências de alguns dos grandes pioneiros da vanguarda do século XX: os mais citados por ele mesmo são o italiano Luigi Nono, o americano Morton Feldman, o austríaco Anton Webern e o alemão Karlheinz Stockhausen. Mas, deixando de lado todo conceitualismo da música do pós-guerra, a obra de Rihm mostrou-se inédita através  de pelo menos dois elementos que o difere dos outros compositores: a falta de um estilo gratuitamente aparente e delineável em sua escrita -- visto que ele já compôs uma infinidade de peças sob as mais variadas formas composicionais, usando elementos do romantismo ao serialismo, e  todas as vezes o fez de forma ímpar! -- e o uso da sua própria subjetividade como matéria-prima do processo de criação. Quer dizer, mesmo alguns compositores ecléticos da modernidade e pósmodernidade, apesar de terem criado música sob as mais variadas tendências, estilos composicionais, experimentalismos e influências de outros estilos que não os da música erudita propriamente, ainda facilitaram o trabalho dos seus críticos no sentido de deixar bem aparente seus estilos: os russos Stravinsky e Schnittke, por exemplo, expressam um personalismo não menos que gritante em suas peças, independente da época em que foram escritas  e de qual estilo composicional foi adotado para escrevê-las -- isto é, o primeiro emana uma orquestração de brilhantismo exuberante e uma pulsação quase sempre sincopada, rítmica demais; o segundo emana uma ironia sombria e, com seu chamado poli-estilismo, parafraseia e embaralha motivos que vão da música renascentista e barroca, passa pelo clássico e romântico e engloba o moderno e a improvisação cacofônica. Mas pensando em cada obra em particular, é preciso convir que Wolfgang Rihm também apresenta suas próprias peculiaridades e seu próprio universo particular. Porém, além de nunca ser um melodista, ele prefere deixar que sua intuição e seu subjetivismo dêem o tom do mistério de todos seus escritos: o resultado é uma música neoexpressionista que, apesar de não ser intrincada em termos de velocidade e pulsação rítmica, parece nunca se decidir entre ser meditativa ou ser demasiadamente intensa, entre ser estruturada e compassada ou ser caótica -- é quase uma música indefinível. 

Morton Feldman
Em uma entrevista dada para o site do The Ensemble Sospeso, ensemble nova-iorquino especializado em música moderna e contemporânea, Wolfgang Rihm apresenta respostas nada menos que sinceras: ao ser perguntado sobre o vagar camaleônico das suas obras, o compositor responde que em sua música cada peça é um indivíduo em particular, responde que se não apega a conceitos (apesar de conhecê-los profundamente), responde que o que vale é sua intuição, sua subjetividade e a continuidade da sua própria busca pessoal, e responde, ainda, que ele não aprecia a idéia de ser um musicólogo questionador da sua própria obra e por isso não se mostra muito disposto para ficar explicando sua própria música: "I am not my own musicologist. Neither do I wish to issue recipes as to how my art is to be interpreted. I only want to make sure that my works retain their individuality: they are individuals with a physiognomy of their own, they have a destiny, they come and go and come again. I really have nothing more to say to that. My work stems from questions. I always begin in a state of knowing nothing. I have no aid in having a “style,” or possessing a means of avoiding style. More and more I am aware of one trait I have: my subjectivity". Apesar de representante de uma corrente da música pós-serialista que ficou conhecida como "Nova Simplicidade", sua música, como já explanado, não apresenta nenhum tipo de simplicidade gratuita ou auto-estilizada, não no sentido estritamente literal do termo "simples": sua música foi assim rotulada apenas porque ele condensou, de forma menos intrincada, o conceitualismo cerebral oriundo da música dodecafônica e do serialismo integral -- ou seja, ele simplificou o uso dos elementos de vanguarda de uma forma própria e nada conceitual --, mas suas peças são extremamente elaboradas, e são tão densas quanto emotivas. Ademais Rihm também faz muito uso de táticas criativas observadas em obras literarárias e outras formas de arte para criar suas composições: há, por exemplo, o balé “Tutuguri: Poème Dansé” para grande orquestra, percussionistas, coro e um alto falante, inspirado na peça "Pour en finir Avec le Jugement de Dieu?" de Antonin Artaud; há lieders e obras onde o compositor se inspira em poetas como e Karoline von Günderrode e Paul Celan; e, entre outros exemplos, uma das últimas óperas do compositor, Dionysus, é baseada num ciclo de poemas de Nietzsche chamado Dionysus-Dithyrambs.






Mas apesar do esforço para facilitar o entendimento do leitor quanto à música de Wolfgang Rihm visto no parágrafo acima, essa tentativa torna-se quase desnecessária se o mesmo leitor não se arriscar a entrar em contato auditivo com as peças do compositor -- e não há desculpas: no Youtube há uma quantidade considerável de excertos de suas peças. Para quem gosta de cordas, Rihm escreveu mais de uma dezena de peças entre quartetos e trios: há uma série lançada pelo selo Col Legno que traz todos os quartetos. Para quem quiser se inteirar do início da carreira do compositor há um CD importado (mas que, pelo preço no Amazon, não deve custar os olhos da cara) com Symphonies 1 & 2 / Nachtwach ( Hanssler Classics, 2009) com a Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart: trata-se das duas primeiras sinfonias, escritas na década de 70 e inspiradas na poética sinfônica de compositores germânicos: Beethoven, Mahler, Webern...), mais um peça para coral. Outra peça que é fantástica e escrita ainda nos anos 70, e que coloquei à disposição de todos para audição, é Morphonie (1973) para quarteto de cordas e orquestra: essa peça pode ser encontrada num CD chamado Morphonie / Klangbeschreibung I - III (Hanssler Classics, 2001), no qual Klangbeschreibung I é uma peça para por 3 grupos de orquestra, Klangbeschreibung II é uma peça para 4 para vozes femininas quinteto de metais, percussão e ensemble e Klangbeschreibung III é para uma grande orquestra -- nesse CD as orquestras atuantes são: Freiburg Symphony Orchestra e SWF Sinfonieorchester Baden-Baden. Mas na minha opinião, entre as várias gravações que contém peças de Rihm, uma das mais interessantes é a Jagden und Formen (Deutsche Grammophon, 2002) com o Ensemble Modern, um dos mais importantes grupos orquestrais especializados em música contemporânea do mundo: a música dessa gravação é totalmente provida de polifonia, contraponto, repetições e diálogos contemporâneos em movimentos rápidos, diferindo-se da maioria das peças de Rihm onde há muitos espaçamentos entre partes de notas longas e flutuantemente escuras e partes de notas escorregadias e explosões mais enérgicas, mas não tão rápidas ou brilhantes ao extremo em termos de tonalidade; nessa gravação, então, as notas são mais curtas e mais rápidas, e o aspecto tonal da peça é bem mais brilhante (talvez mais perto do conceito de Nova Tonalidade, onde se faz um contraste entre atonalidade e tonalidade, entre dissonância e consonância), bem como cada faixa é composta por aforismos quase sempre curtos e sequenciais -- há até uma parte onde o compositor imita sons de trens: observem! Bem...só ouvindo mesmo para sentir o efeito da obra! Recapitulando e tentando concluir com uma síntese, pegue uma dose de dodecafonismo de Webern, misture com uma dose tênue da concepção de "caos organizado" de Stockhausen (vide peças como Gruppen e Klavierstucke) e acrescente à sua concepção própria de "subjetividade como matéria-prima do ato de criar música" e você terá um Wolfgang Rihm: talvez, aí nessa receita, só faltaria incluir o fato de que uma das características da música do compositor é o conceito de dar muita liberdade para cada som ou blocos de sons (acordes) que ele emite, criando peças onde temos a impressão que, no ato da pulsação, cada nota parece fugir uma das outras, resvelando-se entre elas -- nesse sentido há, como também já mencionado, muita influência do compositor americano Morton Feldman, um libertário que se desprendeu das formas estruturais para dar liberdade total aos sons, só que quase sempre lento e em pautas sem andamentos, com muito uso de notas aleatórias. Modesto no trato, mas vaidoso na arte a que se propõe a criá-la, Wolfgang Rihm é um dos grandes gênios do nosso tempo. Só falta nossos produtores e "mecenas" da música erudita no Brasil descobrir isso!

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