Sem nenhuma pretensão heróica, todos aqui sabem que nós, deste blog, sempre debatemos e protestamos em favor de mais espaço para o jazz contemporâneo na mídia brasileira – e agora, essa mesma ênfase se faz necessária, também, para a nossa música instrumental genuinamente tupiniquim. Quem andou observando os editoriais de alguns jornais e revistas, sabe que o ano de 2010 foi deveras representativo para a música em geral: isso porque os críticos, jornalistas, editores e pesquisadores musicais foram tocados a formular suas listas dos “mais relevantes álbuns e projetos musicais da primeira década do século 21”, listas essas que, como sempre, acabam levantando debates e suscitando inconformismos, mas que às vezes, quando a lista é mais acurada, tem-se um panorama ideal de quais artistas estão sendo valorizados num determinado momento – se eles continuarão a ser lembrados e se serão imortalizados no dia de amanhã, isso já é outra história... Como já explicitei várias vezes a todos que por aqui já passaram, eu mesmo não sou muito afeito a rankings e listas prontas do tipo “Os Melhores Álbuns do Ano”, “... da Década”, “...do Século” e nem do tipo “2001 Álbuns que você tem que escutar antes de morrer”, “10 álbuns que você levaria para uma ilha deserta” e etc... -- e não sou afeito à tais listas e rankings por três fatores: primeiro porque os melhores álbuns para as pessoas são aqueles os quais cada uma delas gosta e se identifica, e, por questões de déficits culturais e educacionais históricos, nem sempre as pessoas escolhem gostar dos melhores e mais trabalhados projetos, escolhendo, quase sempre, os mais palatáveis e mais pobres, musicalmente falando; segundo porque a mídia e o mercado fonográfico, ao constatarem a pobreza cultural das pessoas, também se tornam propositalmente “pobres” para tirar proveito comercial disso, enaltecendo e divulgando mais projetos e álbuns conservadores e palatáveis, e deixando de lado o valor da crítica sincera, aquela que deveria ser no mínimo imparcial e prezar, também, pela divulgação de projetos realmente inovadores e ousados; e terceiro porque: se por um lado as influências contemporâneas e, por consequência, as reminiscências estéticas (harmônia, poesia, rítmo, composição e arranjos gerais) deveriam ser os único critérios para se medir a relevância de um projeto musical relacionado à uma época específica, por outro lado a boa música deve ser sempre encarada como uma arte universal e atemporal. Mas daí é o seguinte: como estamos no Brasil, país com uma elite conservadora que prefere importar a música internacional e investir na cultura do entretenimento a investir na cultura da arte e em nossa própria identidade musical – e todos nós sabemos a mesquinharia que é quando o assunto é divulgar um material nacional ou algo de verve mais artística, em contrapartida da mesmice e abundância quando o assunto é a musica pop e dançante – qualquer lista que venha a ser divulgada é automaticamente suspeita de manipulação e heresia, pois preza-se mais tendências comerciais do que o desenvolvimento estético da música em si. No caso específico da nossa música instrumental tupiniquim, como ela não é uma música de aporte comercial, percebe-se que a mídia e o mercado nacionais conseguem ser ainda mais deficitários, deficientes, esnobes e ausentes: não há absolutamente um só grande canal brasileiro que dê importância para os avanços da música instrumental brasileira; não há absolutamente um só canal que tenha divulgado uma lista de álbuns e projetos determinantes para a arte da música instrumental – aliás, falar em 'arte musical' no Brasil parece ser algo muito avançado para nós brasileiros, pois enquanto os europeus, por exemplo, valorizam os fatores 'técnica' e 'inovação' na música com a mesma visão de que eles são fatores indispensáveis nas artes plásticas, em contrapartida aqui em solo tupiniquim a única música relevante e valorizada é aquela que se atrela apenas ao cancioneiro popular, ao folclore e, quando muito, à cultura pop internacional. Isto é, a música é nada mais do que um produto de entretenimento e sua relevância fica intrinsecamente ligada à sua capacidade de ser comercializada. Ou seja, não se preza o requinte artístico, não há uma democracia que permita que trabalhos tecnicamente e esteticamente mais desenvolvidos tenham a mesma igualdade de espaços – ou, pelo menos, tenham alguma modesta porcentagem do espaço – que os projetos de apelo popular detêm.
Hoje em dia a crítica está a favor das tendências mercadológicas, da globalização: crítica, hoje, é marketing pra vender discos. Mas já houve um tempo em que a crítica jornalística estava acima dos poderes do mercado, dos próprios artistas, das rédeas dos editores-chefes e não se importava em agradar o público: a missão da crítica era estar a favor da arte, julgar a favor da qualidade, da inovação; a missão era levar a melhor arte às pessoas. Já houve um tempo na história do jornalismo em que o papel do jornal e da revista era informar o presente e se especular o futuro de forma imparcial. Porém, no jornalismo brasileiro dos último anos, principalmente nos editoriais de arte e cultura, a onda do ofício tem sido ser extremamente segregalista e parcial e, quando se informa, informa-se o passado – visto que, quando se trata de música, a maioria dos jornalistas, supostamente“especializados”, parecem ápitos apenas para indicar os mesmos panteões de 50 ou 60 anos atrás, tais como Miles Davis, Tom Jobim, Frank Sinatra, Billie Holiiday, John Coltrane, João Gilberto, Roberto Carlos, Chico Buarque... como se atualmente não houvesse grandes nomes a serem resenhados, documentados e divulgados – parece que há um certo medo de ferir os ouvidos do público com trabalhos mais experimentais, inovadores e contemporâneos. Mas nem tudo está perdido: a tendência irreversível é a de que a internet passe a ser vista, cada vez mais, como o principal meio de comunicação a enriquecer e modernizar a cultura das pessoas e, consequentemente – enfim! –, parece que uma meia dúzia de jornalistas tem feito um mínimo possível para sofisticar o jornalismo cultural brasileiro em prol de uma amostragem mais ampla das variabilidades da música contemporânea: o veterano jornalista e pioneiro crítico musical Luiz Orlando Carneiro (Jornal do Brasil) e os jovens jornalistas Fabrício Vieira (Folha de São Paulo) e Sergio Martins (Revista Veja) são alguns dos quais tem conseguido enxergar nitidamente os requintes artísticos do jazz contemporâneo e explicitá-los nas páginas midiáticas, ainda que o tamanho e a regularidade dos espaços cedidos nem sempre façam jus à atenção que o gênero precisa para atingir cada vez mais pessoas – ou seja, a atenção dada ao jazz ainda é infimamente pequena se comparado à atenção dada a gêneros como sertanejo, axé e pop music e outras purpurinas sonoras de preponderância comercial; e se formos levar a crítica estritamente na direção da música instrumental brasileira propriamente dita, veremos que praticamente não há nenhuma atenção e preocupação concreta em mostrá-la. Mas não dizem que estamos a caminho de uma democracia plena e moderna? Então, tenhamos esperança, oras bolas!!! Parece impossível, mas quem sabe os editoriais de arte e cultura, num eventual inventário comparativo em relação aos abrangentes editoriais dos países desenvolvidos, caiam na real e venham sofisticar seus espaços com novos espasmos de igualitarismo, né? Há um “new jornalism” rolando lá fora...
Vejam bem: não estamos pedindo que os grandes canais midiáticos deixem de dar ênfase nos gêneros que lhes dão lucros comerciais – no pop, no rock, no axé, no pagode, no sertanejo e afins – , mas estamos lhes chamando atenção para o fato de que uma regular e mais diversificada amostragem musical, incluindo de gêneros estritamente artísticos como o jazz e a música instrumental brasileira, os colocaria em outro plano de sofisticação, pois uma abordagem mais variada da música contemporânea não se faz necessária só por que há um público ávido por novas informações – porque no Brasil há, sim, um público em formação que está procurando gostar de jazz e música instrumental –, mas uma abordagem rica e diversificada se faz necessária, sobretudo, pela própria missão que a mídia tem de enriquecer o conhecimento e a cultura das pessoas – é um princípio óbvio; não é demagogia; é um ônus! O mais interessante é que, na contramão de um revival e uma ênfase exarcebada ao samba e à bossa nova – em 2008, por exemplo, teve-se 50 anos de aniversário do gênero, às vezes considerado o principal sinônimo de música sofisticada brasileira – a revolução musical sessentista a qual parte da mídia ainda insiste em considerar moderna e contemporânea, a tendência que já vinha mostrando as garras através dos lançamentos dos principais músicos brasileiros foi, justamente, uma maior atenção às variabilidades da música como um todo – das estéticas vanguardistas ao mainstream –, procurando alçá-las a novos patamares de contemporaneidade: e é por esse caminho que o jazz, a MPB e a música instrumental brasileira acabam encontrando terreiros férteis, pois são gêneros nos quais os músicos e musicistas sempre estão em constante evolução, sempre procurando renovar seus estilos e inovar suas abordagens com novos ingredientes e experimentos. É isso, aliás, que os lançamentos mais reveladores da música instrumental brasileira tem deixado claro.
Na lista abaixo, onde levantei 21 dos mais interessantes lançamentos da nossa música instrumental – na minha pesquisa e opinião –, o que se pode constatar é o trabalho de veteranos e jovens progressistas em favor de uma música nova: quem veio do tradicional choro, inovou o choro (caso do bandolinista Hamilton de Hollanda); quem se filiou à “música universal” de Hermeto Pascoal, procurou levá-la adiante como um dos mais novos e mais influentes avanços da música brasileira (casos do Trio Curupira, do grupo Armazem Abaporu e da Itiberê Orquestra Família); quem veio da influência da bossa-nova e do samba-jazz procurou diversificar e atualizar seus trabalhos com versões modernas de frevos, latinidades e pitadas de jazz contemporâneo (casos do guitarrista Michel Leme e do baterista Alex Buck); quem procurou focar seu trabalho em releituras da MPB, valorizou não só a bossa nova, mas o cancioneiro mineiro e a música nordestina (casos do saxofonista Carlos Malta, do contrabaixista Dudu Lima e do Duo Gisbranco); e ainda houve aqueles que não foram adeptos à nenhuma escola específica e, por consequência, acabaram trazendo estilos diferentes de fazer música (caso do trio pernambucano Rivotrill). Enfim, como a mídia brasileira não documenta e não veicula a música instrumental brasileira, até parece que não temos uma música instrumental ousada, moderna, diversificada e desenvolvida tal como está acontecendo no jazz contemporâneo. Mas as evoluções estão aí, em curso! Talvez as passadas da música instrumental brasileira sejam mesmos mais lentas se comparadas às passadas evolutivas do jazz – já que, como citamos anteriormente, no Brasil a música que é relevante para receber financiamento e espaços na mídia é aquela que se limita entre os meandros do folclore, do cancioneiro popular e da música pop importada, enquanto as músicas americanas e européias, além de dar muito mais espaço e financiamento para o desenvolvimento do jazz e da música erudita, prezam por uma abordagem mais urbana e vanguardista –, mas há de se convir que, genealógicamente, depois das experiências que tivemos com o choro, com o samba-jazz e com a miscelânea inovadora de Hermeto Pascoal, podemos dizer que já temos uma linguagem de música instrumental própria e bem desenvolvida, e a culpa, portanto, nem sempre é dos músicos: a culpa é da mídia que, ao não informar o público sobre o que acontece na seara instrumental, acaba limitando o conhecimento das pessoas comuns, o que restringe o crescimento deste nicho musical e forçam os próprios músicos a trabalharem numa linha mais conservadora para poderem sobreviver do seu ofício – e daí, as pessoas ficam achando, por exemplo, que bossa nova e jazz são a mesma coisa (acham que é apenas música ambiente ou música para idosos), isso sem considerar que muitas destas pessoas, ao ouvir uma banda instrumental, acaba achando que a banda está incompleta, pois estão acostumados apenas a ouvir a voz – na forma simples, cantada – como o sujeito principal da música – e os canais de rádio não estão nenhum pouco preocupados em mudar essa visão ignorante e limitada que a maioria das pessoas tem. Ora, como se já não bastasse a população ser ludibriada com esta visão simplória dos canais de rádio e com os limites dos canais de televisão aberta – onde a programação é limitada a quatro ou cinco novelas diárias (pra quê tanta novela, Senhor!?), duas ou três séries ou programas de comédia pobre, um ou dois jornais sensacionalistas e alguns programas de auditório, vitrines que insistem em divulgar sempre o mesmo cast de artistas e celebridades – será que nossos jornais e revistas, meios de informação comprados por pessoas mais curiosas, nunca tomarão as vias da sofisticação cultural? Enfim, assim como a música erudita e a própria música popular cunharam seus mestres imortais, a musica instrumental brasileira também está repleta de mestres à espera do respeito, da importância e da imortalidade que só a mídia lhes pode conferir – afinal, não é à toa que pessoas de várias partes do planeta sempre se lembrarão de Bach, Beethoven, Wagner, Stravinsky, Duke Ellington, Villa-Lobos, Tom Jobim, Beatles, Bob Dylan, Miles Davis, Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Milton Nascimento, Chico Buarque...e muitos outros compositores universais.
Abaixo, sem nenhuma sequência numérica, listo 21 álbuns indispensáveis da Música Instrumental Brasileira lançados entre 2000 e 2010. Esta lista servirá de guia para nossa série de posts chamada Retrospectiva dos anos 2000, só que com foco nos principais músicos, bandas e álbuns brasileiros da década. Os critérios para a escolha de tais álbuns foram os básicos: quando estamos falando nas artes do jazz e da música instrumental brasileira contemporânea, estamos falando em inovação, arranjo, composição, harmonia, rítmo, improvisação, contemporaneidade, estilo próprio e etc – 21 dos trabalhos nacionais desta década que mostraram algum requinte nesses critérios foram selecionados. Não é uma lista com a pretensão de ser um “Top 20”, uma lista fechada ou definitiva, mas pode ser considerada uma lista por onde se poderia começar a montar uma discoteca básica de música instrumental brasileira contemporânea, pois prezei por mostrar desde trabalhos de músicos veteranos até os de músicos jovens, desde o brazilian jazz até as últimas abordagens do choro, passando por releituras modernas do cancioneiro popular e pelas bandas e músicos influenciados pelas inovações de Hermeto Pascoal – ou seja, são projetos interessantes que podem ser considerados verdadeiras pontes entre a nossa tradição popular e a música contemporânea, com realce para nossa brasilidade. Confiram e estejam atentos, pois esses álbuns, bandas e músicos, se já não foram citados, serão todos resenhados no nosso blog no Portal MTV! Caso queiram indicar mais discos, a sessão de comentários está aberta a sugestões!
Mundo Verde Esperança (Rob Digital, 2003) – Hermeto Pascoal & Grupo
Pedra Grande (Editio Princeps, 2004) – Armazém Abaporu
Calendário do Som (Maritaca, 2005) – Itiberê Orquestra Família
Curupira (Jam Music, 2000) – Trio Curupira
Brasilianos Vol. 2 (Adventure Music, 2008) – Hamilton de Holanda Quinteto
Curva de Vento (Trama, 2008) – Rivotrill
...de árvores e valsas (Estúdio Monteverdi/ Tratore, 2008) – André Mehmari
“5º” (Independente, 2010) – Michel Leme
Trio + 1 (Núcleo Contemporâneo/ Adventure Music, 2009) – Benjamin Taubkin Trio & Joatan Nascimento
Luz da Lua (Maritaca, 2006) – Alex Buck
In Set (Independente, 2010) – Bruno Migotto
Horizonte Artificial (Tratore, 2007) – Sinequanon
Ouro Negro (Adventure Music, 2001) – Moacir Santos (projeto de Mario Adnet e Zé Nogueira)
Cordas Mineiras (Blues Time +/ Tratore, 2010) – Dudu Lima
Acid Samba (L177 Records, 2001) – Bocato
Pimenta (Independente/ Malta, 2000) – Carlos Malta
Terra Amantiquira (Maritaca, 2006) – Orquestra Mantiqueira
Passo de Anjo (Biscoito Fino, 2004) – Spok Frevo Orquestra
El Negro Del Blanco (Biscoito Fino, 2004) – Paulo Moura & Yamandú Costa
Choro Ímpar (Acari Records, 2007) – Maurício Carrilho
Gisbranco (Delira Musica, 2008) – Duo Gisbranco
4 comentários:
Me formei em jornalismo, hoje trabalho com comunicação e eventos e, defendendo minha classe, eu diria:
Ahhh, se nós jornalistas tivéssemos o poder de escrever e divulgar o que quiséssemos...
pq conheço jornalistas que tem um vasto conhecimento e uma grande paixão pela pesquisa e investigação, mas eles precisam obedecer, como bem disseste, seus editores-chefes...
é uma pena, fazer o quê?
Mais uma bela resenha, caro Pitta!
Abraços e Feliz 2011!!!
Bom a resenha está ótima, mas a lista, eu acrescentaria Estação Brasil do Arismar do Espírito Santo, Alma de Nordeste do Jovino Santos Neto, Braziliance x 4 do Claudio Roditi e outros que agora mesmo estou vendo aqui na minha estante empoeirada. Mas a iniciativa do blog é extraordinária. Parabens.
Achei a lista fabulosa.
porem achei que faltou Guinga - cine baronesa 2001 e Fabio Leal quarteto - 2009
obrigado.
Olá! Gostei bastante da lista e principalmente da resenha.
Eu acrescentararia o disco do Continentrio, homônimo, de 2004.
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