O Free Jazz ou Avant-Garde Jazz, que deu origem à Free Improvisation, é uma estética de arte musical, a princípio oriunda da radicalização do jazz norte-americano, de mais ou menos 50 anos de existência -- isso, se contarmos dos primeiros registros lançados no final dos anos 50 e início dos anos 60 por músicos como Ornette Coleman, Cecil Taylor, Paul Bley, John Coltrane, Albert Ayler e etc. Portanto, trata-se de uma vertente musical que, apesar de iniciar-se como pregadora da rebeldia, da liberdade e da contracultura musical americana, conseguiu ser uma expressão artística que, como várias outras vertentes de arte duradouras, também passou por seus altos e baixos, também passou por suas evoluções e crises de identidade: já no início da década de 70, com exceção das novidades reveladas por expoentes criativos ligados a instituição AACM (como Anthony Braxton, Art Ensemble of Chicago e alguns outros raros exemplos), essa música já não tinha muito o que mostrar dentro dos limites EUA -- algo que foi piorado ainda mais com a ênfase que o mercado americano passou a dar nas estéticas e modismos comerciais da época -- e, portanto, ela começou a se radicalizar na Europa, onde atingiu um caráter ainda mais rebelde e experimental, afastando-se das suas associações jazzísticas e desembocando-se na seara do noise puro. Essa "desassociação" ficou muito clara a partir dessa fase européia, pois o termo "free jazz" parecia se tornar um rótulo limitante, e outros rótulos mais vagos ou mais genéricos como "avant-garde", "free improvisation", "improvised music" e "creative music" foram sendo usados para denominar essa música que atingia seu ápice libertário. Nos anos 80 e na primeira metade dos anos 90, o mundo assistiu os EUA retomar a cultura do jazz na forma de resgate dos valores culturais e tradicionais fincados pelos primeiros mestres do swing e do jazz moderno -- e foi nessa época, que a maioria dos músicos da nova geração de então passou a rejeitar a radicalização do free jazz e a free improvisation européia como fatos importantes ou influenciadores para o desenvolvimento do jazz, reivindicando a autenticidade estética e cultural do gênero. Na segunda metade dos anos 90, porém, evidenciou-se mais uma outra nova geração de músicos, mas esses já estavam se desprendendo do tradicionalismo da geração anterior através projetos mais ecléticos, o que contribuía, agora, para uma retomada, também, dos valores e das inovações deixadas pelos vanguardistas da segunda metade do século XX: foi aí que o free jazz e a free improvisation começou a passar por um processo de resgate e de renovação das suas estéticas através desses novos e jovens músicos e dos muitos veteranos que aguardavam por momentos melhores, os quais, juntos, começaram a explorar a revitalizar essa música através da exploração de "novos" processos como, por exemplo, o uso da condução, da composição escrita e da manipulação eletrônica em interação com a livre improvisação e o entrelace com outros gêneros musicais como o pop, rock e hip hop. Para além das performances em combos -- em solo, duo, trio, quarteto, quinteto e etc --, houve uma revalorização muito razoável das orquestras de free improvisation, assim como nos anos 60 e 70 os primeiros conjuntos orquestras desse estilo atingiram sua efervescência -- vide, por exemplo, álbuns gravados por conjuntos orquestrais ou coletivos pioneiros como o Free Jazz - A Collective Improvisation de Ornette Coleman, Ascension de John Coltrane, os registros da Globe Unity Orchestra, do alemão Alexander Von Schlippenbach, e da Brotherhood of Breath, do sul africano, naturalizado inglês, Chris McGregor. Neste post, então, lhes apresento e indico alguns álbuns de algumas dessas grandes orquestras contemporâneas, tanto européias como americanas. Leiam e ouçam:
Projeto do cornetista Rob Mazureck, a Exploding Star Orchestra tem dois álbuns lançados: o primeiro é o “We are all from somewhere else" (Thrilljockey, 2005) e o segundo é este que vos indico "Bill Dixon with Exploding Star Orchestra” (Thrilljockey, 2008), em tributo ao recém falecido trompetista Bill Dixon. Distante do cenário do free jazz desde 2001 para dar aulas de composição no Bennington College, Bill Dixon volta à ativa através do grande destaque que obteve neste disco, tocando e contribuindo com duas composições suas: uma é a primeira faixa "Entrances I" que começa com a bateria ditando um rítmo bem característico de New Orleans, enquanto os intrumentos vão, um a um, iniciando as improvisações livres até todos chegar a um êxtase cacofônico, diminuindo-o pouco a pouco, fazendo uso de atonalidades, improvisos sutis e, logo após, o uso do silêncio; a outra composição de Bill Dixon é a terceira faixa "Entrances II", que é nada mais do que uma variação da primeira faixa. Rob Mazureck, por sua vez, compôs a segunda faixa intitulada "Constellations for Innerlight Projections (For Bill Dixon)": a composição começa um poema recitado por Damon Locks para depois lembrar os arranjos estelares de Sun Ra e sua Arkestra, além de, também, fazer uso do silêncio, usar livre improvisação e eletrônica com efeitos de laptop. Bill Dixon with Exploding Star Orchestra é um disco maravilhoso e interessante de se ouvir porque tem uma mesclagem bem diversa de sonoridades, melodias e rítmos livres, além do recurso da eletrônica dentro do processo, que é algo que Mazureck tem explorado com muita ênfase em sua discografia -- vide seus interessantes projetos como Chicago Underground, Exploding Star Orchestra e São Paulo Underground (um interessante colectivo com improvisadores paulistanos). Mediante este álbum, a Exploding Star Orchestra foi uma das orquestras mais bem votadas pelos críticos da Down Beat na categoria de melhor "big band/ orquestra/ grandes conjuntos" do ano de 2008
Lawrence Butch Morris |
A Nublu Orchestra é formada a partir de uma gama multifacetada de músicos com experiências em vários estilos músicais e de vários países, inclusive do Brasil: membros de bandas como Brazilian Girls, Wax Poetic, Kudu, Forro in the Dark, I Led Three Lives, Love Trio e regulares convidados como Graham Haynes e Eddie Henderson são alguns dos que forma a banda sob a batuta de Lawrence Butch Morris, trompetista e mastro que inventou uma ténica de condução chamada "Conduction". Tendo a carreira iniada no free jazz, Butch Morris passou a se dedicar à faceta da composição e regência nos anos 80, vindo, posteriormente, criar sua própria técnica de regência que difere, portanto, da condução clássica: essa técnica "Conduction" é um vocabulário de sinais ideográficos e gestos que são usados para modificar ou construir uma composição ou um diálogo orquestral no momento real da improvisação. No total, há trinta e um sinais elaborados por Morris, e cada uma pode ser usado para instigar ou manipular aspectos relacionados à harmonia, melodia, ritmo, articulações, dinâmicas, improvisos, entre outras facetas musicais. Após disseminar suas concepções dirigindo inúmeros conjuntos de improvisação livre e outros conjuntos orquestrais em vários países, Butch Morris fundou este projeto com a Nublu Orchestra, vindo a lançar recentemente este álbum, que, por enquanto, é o único da banda. Não trata-se de um álbum ruidoso e cacofônico: aqui, apesar das bases estarem fincadas na espontaneidade da improvisação livre, também existe uma gama de influências que partem do jazz, passa pelo funk e aporta nas possibilidades da manipulação eletrônica -- improvisações livres contracenam, então, com composições espontâneas ou escritas previamente.
Tendo origem nas oficinas, workshops e sessões de improvisação que o maestro americano Lawrence Butch Morris realizou em Londres em 1997, a London Improvisers Orchestra em pouco tempo se tornou um fenômeno musical londrino, atraindo a atenção de diversos músicos-improvisadores europeus e americanos. De olho nesse fenômeno o produtor Martin Davidson, dono da gravadora Emanem, logo tratou de acompanhar os progressos da banda, documentando-a através de excelentes gravações. A orquestra é influenciada, lógico!, pela estética européia das explosivas orquestras de improvisação de outrora -- como a Globe Unity Orchestra, do alemão Alexander Von Schlippenbach, e a Brotherhood of Breath, do sul africano, naturalizado inglês, Chris McGregor -- mas também incorpora o conceito de condução e regência inventado por Butch Morris, um músico que carrega nao apenas o free jazz em sua formação, mas elementos de toda a cultura afro-americana e aspectos da música erudita de vanguarda. Outro ponto importante é que, apesar da orquestra ter a colaboração de grandes e respeitados músicos, não há a preponderância de um líder: todos, veteranos e jovens, podem se interagir livremente e todos podem conduzir uma sessão de improvisação, se assim o desejar. Dessa forma, as improvisações livres são trabalhadas através dos sinais de condução que os regentes, no momento da performance, impõe ao grupo, criando efeitos, nuances e inúmeras dinâmicas sonoras em tempo real -- ou seja: o regente conduz a orquestra de forma livre e espontânea; e dentro da orquestra, cada músico, usando as técnicas convencionais ou extendidas do instrumento, pode improvisar livremente. Um dos exemplos mais eloquentes desse conceito é essa gravação captada numas das sessões do festival Freedom of the City, realizado no clube Red Rose, em 2007. Aqui, a London Improvisers Orchestra divide o palco com outra orquestra de mesmo nível e conceito: a Glasgow Improvisers Orchestra, da Escócia. Revenzando-se em alguns momentos e interagindo-se em outros, a LIO e a GIO realizaram um dos mais interessantes registros de improvisação livre, no âmbito orquestral, dos últimos anos: e as faixas On the Point of Influence (conduzida pelo violinista Philip Wachsmann à frente da LIO) e Joint Response (conduzida pelo contrabaixista David Leahy, à frente da LIO + GIO), já valeriam a aquisição do álbum.
Roscoe Mitchell & Evan Parker: líderes do Transatlantic Art Ensemble, um encontro entre americanos e europeus
Assim como nos projetos de Rob Mazurek ou nos disseminados por Butch Morris, este dois discos (volumes de um só projeto) mostra o quanto o arranjo e a composição escrita evoluiu dentro das grandes orquestras e coletivos de improvisação livre -- lembrando que músicos ligados à AACM já haviam realizado essa mistura de composição com improvisos livres já a partir dos anos 70. É claro que a improvisação -- individual e/ou coletiva -- ja é um processo de composição instantânea (instant composition) ou descomposição de algo que já foi composto, mas aqui falo da composição elaborada e escrita previamente à mão, uma arte que tem sua origem na música erudita e demanda grande conhecimento musical de quem pretende dominá-la. Nos mesmos moldes da London Improvisers Orchestra, mas esteticamente marcado pelas diferenças entre os sotaques americanos e europeus, este projeto foi elaborado por dois dos maiores ícones do jazz americano e da música improvisada européia, respectivamente: Roscoe Mitchell (membro do Art Ensemble of Chicago e um dos fundadores da AACM) e Evan Parker (uma inegável lenda viva da free improvisation européia). Em 2004 estes dois ícones fundaram um inusual coletivo de músicos intitulado de The Transatlantic Art Ensemble, constituído por músicos seminais dos dois lados do Atlântico (ou seja, por músicos do cenário do jazz americano e do cenário do free europeu) para se apresentar no Simpósio de Música Improvisada promovido pelo departamento de cultura de Munique naquele ano. Esse projeto foi dividido em dois concertos os quais foram captados para serem eventualmente editados e lançados selo holandês ECM. Em 2007, foi lançada a primeira parte do concerto no Composition/Improvisation Nos. 1, 2 & 3 sob a direção musical de Mitchell, que, a através de nove fragmentos, apresentou seu estilo de juntar a composição escrita com a improvisação livre: foi um dos lançamentos mais aclamados do ano e representou, para os críticos da mídia especializada, uma das maiores pepitas da discografia de Mitchell. Em 2008 a ECM lançou a outra parte do concerto que foi liderada por Parker: intitulado Boustrophedon, o CD representou uma "anomalia" na discografia de Parker por se tratar de composições estruturadas onde, também, a improvisação livre coexiste com a composição escrita, de forma que, para o ouvinte digerir as oito faixas constuídas de uma introdução (Overture), seis fragmentos (Furrows) e um final (Finale) torna-se uma tarefa difícil no que diz respeito ao distinguir as partes onde o ensemble improvisa livremente das partes onde o ensemble intrepreta a composição escrita - e aí, o estranhamento da crítica se deu pelo fato de que foram raras as vezes em que o improvisador inglês lançou trabalhos por onde transita pelo território da regência, da escrita e notação musical. Sobre a rotulagem e categorização -- papel que os críticos exercem para delimitar a estética de trabalhos que, como este, reúnem músicos com influências as mais diversas (do jazz americano, da música improvisada européia e da música erudita contemporânea) --, disse o próprio Roscoe Mitchell: "I don't call music anything, but music". O fato, porém, é que independente do que chamam ou chamarão esta música -- free jazz, free improvisation, free music, instant composition e etc --, trata-se de uma arte diferenciada pela criatividade e espontaneidade que ela detém -- uma arte diferenciada para toda e qualquer pessoa que tiver a capacidade de abrir a mente para a música nua e crua, sem pensar em métodos tradicionais e em delimitações e limitações já tarimbadas. Clique nas imagens para acessar mais informações e para comprar os álbums sugeridos.
Evan Parker- soprano saxophone
Roscoe Mitchell- alto and soprano saxophones
Anders Svanoe- alto saxophone
John Rangecroft- clarinet
Neil Metcalfe- flute
Corey Wilkes- trumpet, flugelhorn
Nils Bultmann- viola
Philipp Wachsmann- violin
Marcio Mattos- cello
Craig Taborn- piano
Jaribu Shahid- double-bass
Barry Guy- double-bass
Tanni Tabbal- drums, percussion
Paul Lytton- drums, percussion
Roscoe Mitchell- alto and soprano saxophones
Anders Svanoe- alto saxophone
John Rangecroft- clarinet
Neil Metcalfe- flute
Corey Wilkes- trumpet, flugelhorn
Nils Bultmann- viola
Philipp Wachsmann- violin
Marcio Mattos- cello
Craig Taborn- piano
Jaribu Shahid- double-bass
Barry Guy- double-bass
Tanni Tabbal- drums, percussion
Paul Lytton- drums, percussion
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