
Da mesma forma que o ouvinte mainstream estigmatiza as gravações de free jazz com denominações como "barulho inaudível", o ouvinte vanguardista se equivoca ao afirmar, generalizadamente, que o modern mainstream é apenas um recapeamento da tradição. Para alguns jazzistas bitolados em vanguardas, a música só é relevante enquanto arte se o improviso imperar sobre a composição, apresentando experimentalismos parafernálicos, sinuosidades, atonalidades e intrincâncias, ou seja, se for inaudível para ouvidos menos acostumados com o atonalismo e as arritmias da livre improvisação: o que parece tratar-se de uma preposição individualista que só fundamenta a vontade do tal apreciador de se sentir com intelecto diferenciado - ou de se sentir especial de alguma forma - perante ao ouvinte mainstream. Felizmente, há mentes mais abertas, que sabem que mesmo a música simples, quando bem elaborada, pode representar arte de alto nível, e que sabem que o mainstream, na maioria das vezes, é muito mais complicado e exige do artista muitos detalhes e técnicas que não são exigidos nas artes de livre improvisação ou composição espontânea: elaborar progressões harmônicas inusitadas, escrever arranjos para instrumentos com tessituras diferentes, criar efeitos e nuances e ainda fazer com que os membros de uma banda assimilem as idéias e soem integrados, por exemplo, é um processo artístico um tanto quanto trabalhoso - contando aí a necessidade que o artista tem de se renovar e apresentar novas facetas de tempos em tempos. No entanto, Paul Bley, pianista pioneiro do free jazz, foi e é assim: ele consegue agradar gregos e troianos, justamente por deixar aparente que seus trabalhos, com base no free jazz e na música contemporânea, casa a espontaneidade com inteligentes idéias e arranjos. Se você não curte Free Jazz porque acha que o revolucionário Cecil Taylor, por exemplo, soa por demais abstrato, barulhento e percussivo ao extremo, certamente essa desculpa não funcionará com Paul Bley, um dos primeiros responsáveis por configurar, ao piano, as idéias criadas por Ornette Coleman em 1959. Aliás, se Cecil Taylor – que inicia o free jazz de forma bem situada e coerente na mesma época de Ornette – embriagou-se cada vez mais em sua própria sede de abstração depois da sua primeira fase nos anos 50 e 60, Paul Bley, lúcido, enriqueceu cada vez mais seu estilo improvisativo, nunca deixando de pensar na importância do ritmo, das nuances, das dinâmicas e da harmonia. A concepção de cores na improvisação de Paul Bley, embora liberta de padrões harmônicos e rítmicos, se mostrou singular no universo do jazz sessentista, assim como foram as cores harmônicas e melódicas emitidas por outros pianistas singulares como Thelonious Monk, Andrew Hill, Bill Evans e pelo próprio Cecil Taylor em seus discos iniciais. Ou seja, Paul Bley é um dos únicos pianistas do free jazz com a capacidade de mostrar que a abstração, essência da vanguarda ultra expressionista vigente a partir dos anos 50, não é um empecilho para que as cores harmônicas e melódicas atuem umas sobre as outras dentro de uma composição ou livre improvisação. Uma música pode ser free e atonal e, ainda assim, soar agradavelmente melódica: é o que prova muitas obras de Paul Bley.
Nascido em Montreal, Canadá, Paul Bley iniciou sua carreira de forma muito precoce: começou aprendendo piano aos sete anos de idade, aos 11 já era um pianista graduado pelo McGill Conservatory, aos 17 já era conhecido na cena de Montreal, chegando a substituir ninguem menos que Oscar Peterson nos recitais do Alberta Lounge (lembrando que nessa época, 1949, Peterson já estava se projetando internacionalmente, sendo essa a causa do seu afastamento). Foi nessa época, inclusive, que Paul Bley fundou o Montreal Jazz Workshop, programa que trouxe Charlie Parker, Sonny Rollins, Brew Moore e Alan Eager para a cidade - e ele, o jovem Bley, claro, era o pianista que se aprensentava com todos esses músicos brilhantes que iam à esse Workshop. Mas o cenário do Canadá se mostraria muito pequeno diante da grandeza artística e das ambições de Bley. Em 1950, ele se mudou para Nova York, onde estudou na Julliard School of Music de 1950 à 1954. Já famoso por ter tocando com Charlie PArker e outros músicos importantes no cenário de Montreal, Bley iniciou sua carreira em Nova Iorque com o pé direito, tendo uma banda com músicos igualmente promissores da época: Jackie MacLean, Donald Byrd, Arthur Taylor e Doug Watkins. Neste período, ele também viajou com Lester Young, Ben Webster, Roy Eldridge e Bill Harris. Uma curiosidade, talvez por conta do seu inquientante espírito inovador, eram as suas frenquentes visitas às famosas sessões de sábado à noite no estúdio de Lenny Tristano, onde ele observava aquele pianista que fora considerado um "louco vanguardista" pela maioria dos músicos desde o final dos anos 40, os quais consideravam suas idéias - sobre usar a atonalidade e tornar o jazz mais espontâneo - bem desconexas das propostas vigentes no jazz daquela época. Em 1952 Bley já atuava como presidente da Associated Jazz Societies de New York, o que levou Charlie Mingus à conhecê-lo e contratá-lo para ser o pianista da sua banda em alguns momentos dos anos 50: inclusive seu disco de estréia, Introducing Paul Bley (1953), foi com um trio constituído por Art Blakey e Mingus, disco lançado pelo próprio selo do contrabaixista, o Debut Records.
Mas, as contribuições de Paul Bley não param por aí; e há outras curiosidades que ocorreram antes dele firmar-se com seu trio e depois de ter feito suas inovadoras gravações de free jazz com quarteto e quinteto que tinham a colaboração de gente como Pete LaRoca, Eddie Gomes, Barry Altschul, John Gilmore, Marshal Allen, Milford Graves, Steve Swallow, dentre muitos outros. Em 1963, por exemplo, Bley e Herbie Hancock foram convidados para tocar com as bandas de Miles Davis e Sonny Rollins, numa noite de segunda-feira, onde os dois se apresetariam no Birdland. A ambos foram oferecidos empregos como pianistas residentes em qualquer das duas bandas. Hancock simpatizou-se com Miles e Miles com ele. Bley escolheu se juntar ao quarteto de Rollins, com o qual gravaria e viajaria em turnê para o Japão.

Depois, Bley montou seu próprio trio - primeiramente com o contrabaixista Gary Peacock e o baterista Paul Motian, depois com o contrabaixista Steve Swallow e o baterista Barry Altschull -, banda que se tornaria um modelo pelo qual outros trios seriam influenciados, além de ter sido um carro-chefe para as inusitadas e estranhas composições da esposa, Carla Bley, e de Annete Peacock, esposa de Gary Peacock - vide, por exemplo, o disco Paul Bley With Gary Peacock, gravado pela ECM em 1963 -, lembrando que Paul Bley se casaria com Annete Peacock e Carla Bley se casaria com Steve Swalow (fato que, pelo que se sabe, nunca gerou grandes desavenças entre Paul Bley e Steve Swallow ou Paul Bley e Gary Peacock - aliás, Bley e Peacock gravariam outros discos depois do acontecido: como o disco Not Two, Not One, de 1999, gravado pela ECM). Outra curiosidade é que Paul Bley, inquieto, começou a experimentar o uso de sintetizadores no final dos anos 60, sendo um dos pioneiros do uso de efeitos eletrônicos no jazz. Assim, com seu espírito que era intimista, introspectivo e ao mesmo tempo libertário, Bley era sempre sondado pelo produtor Manfred Eicher, que via no pianista uma personalidade musical que casava muito bem com a nova proposta de som que a ECM vinha estabelecendo: experimental, mas mininalista,intimista, ambient e introspectivo. Francis DAvis, em seu artigo para o New York Times, salienta: "Ao gravar o álbum a solo "Open to Love" para a etiqueta alemã ECM em 1972, num esforço para reproduzir os sons longos do sintetizador, Bley pediu que o microfone fosse colocado mais perto e que fosse dada atenção especial ao timbre na gravação do piano - técnicas de gravação que se tornaram a marca da ECM, embora tenham sido mais associadas a Keith Jarrett do que a Bley". Ademais, Paul Bley foi um dos pioneiros das gravações com piano-solo ao lado de Keith Jarrett e o "underrated" Ran Blake - vide, por exemplo, o prório disco Open, to Love (ECM), lançado um anos antes que o disco Facing You de Keith Jarrett. Aliás, a despeito da ampla atenção que já recebe Jarrett por suas gravações ao piano-solo, essa é outra faceta de Bley que merecia ser mais observada, mas parece que nem todos os críticos de jazz têm a perícia de Francis Davis, premiado crítico e jornalista, residente do The Village Voice e colaborador de grandes jornais e revistas como The New York Times e Atlantic Monthly. Acima deixo para os leitores audios e links para download de alguns dos discos citados: para baixá-los basta apenas clicar nas imagens. Baixe! Abaixo uma amostra de um dos discos do início do free jazz: Footloose!











3 comentários:
Mestre Pitta,
Isso aqui é uma resenha ou é um tratado sobre Bley?
Decerto são poucos, pouquíssimos, os músicos que podem se orgulhar de ter tocado, em seu disco de estréia, com instituições como Art Blakey e Charlie Mingus!!!!
O Bley era um pianista bop altamente promissor (tenho esse primeiro álbum e um mais recente no qual ele revisita o be-bop de forma magistral).
Embora a fase free não me emocione tanto (tenho alguns discos com Gary Peacock, NHOP, Swallow e Giuffre), acho que o momento mais lírico e introspectivo do "Bill Evans canadense" é o álbum Diane, ao lado de Chet Baker - discaço!!!
Abração!
rs,obrigado por apreciar meus escritos Mestre Érico! Essa resenha eu tinha começado a escrever algum tempo atrás, mas por me achar incapaz e por ter ouvido muito pouco o bley, preferi baixar e emprestar alguns albuns para se ter melhor uma noção do legado do homem...e aí começa aquela coisa de cruzar informações daqui e ficha técnicas acolá e aí a resenha que era pra parecer simples e pequena acaba virando um monstro desses hehehe...só espero que esteja de bom entendimento!
ahh, sim, claro, obrigado pelas dicas!
O Borbolestas de Jade deve ter em seu site esse Diana de Bley com Chet...depois, se me sobrar tempo, passo lá pra conferir!
abraço!
Pitta, grande resenha! Bley é uma figura sedutora, que mesmo estando nos primórdios do free sempre manteve uma pegada lírica: basta ver o belo disco "Romance In The Big City” que fez em duo com o saxofonista Kenny Millions.
um abraço, Fabricio
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