Há mais ou menos umas cinco revistas especializadas em jazz nos EUA, todas conhecidíssimas e de fácil acesso nas bancas dos cidades centrais americanas e, principalmente, na internet: lista-se, então, a Downbeat (a mais prestigiada delas, chamada a "Bíblia do Jazz"), a excelente Jazz Times, a gratuita Jazz Improv, a antenada All About Jazz e a moderna e mais jovem Jazziz. No entanto, até nos EUA - onde o jazz é para o povo americano a mesma coisa que o samba é para o povo brasileiro - nem todos os momentos célebres do jazz são documentados pelos canais da "grande mídia" que enfatizam o gênero (leia-se jornais, TV, web sites e as já citadas revistas especializadas). Não! Não estou cometendo o disparate dizendo que o jazz é mal-documentado em seu próprio cenário e local de origem. Dizer isso seria uma grande hipocrisia, haja vista que nunca antes na história do gênero houve tantos músicos e tantos estilos se contracenando e, por consequência, nunca houve tantos holofotes e tanta valorização na mídia e mercado como há atualmente. A verdade é que realmente houve, desde a década de 80, um "Renascimento do Jazz" nos EUA e uma grande expansão do mesmo aos grandes centros musicais do mundo. Mas aos jazzófilos visitantes deste espaço - que, como eu, estão sempre sedentos por notícias, conceitos, novas sonoridades e discussões afins - digo que o conhecimento do cenário atual só é pleno quando transcorremos por bons blogs e sites de músicos: porque uma coisa é ler a informação do ponto de vista da crítica do jornal ou revista, outra coisa é ler a informação e opinião vinda do próprio site do músico. E o acontecimento não documentado que aqui cito é relacionado ao encontro de duas das entidades mais onipresentes na mídia norte-americana e nos lugares do mundo onde se preza o jazz: uma é o leão Wynton Marsalis, totalmente adepto a tradição jazzística e à insenssante busca ao "jazz autêntico"; outra é o pianista Ethan Iverson do trio The Bad Plus, banda que mescla jazz contemporâneo com releituras díspares do pop, rock e da música contemporânea (de Stravinsky a Bee Gees e/ou de Duke Ellington à Radiohead):
Sim! Em Dezembro de 2008 aconteceu esse que foi um dos encontros mais "estranhos" do jazz contemporâneo. O notável pianista Ethan Iverson, membro dessa atual e protagonista banda jazz-pop-progressista chamada The Bad Plus, encontrou e entrevistou o iconófilo (em relação a tradição) e iconoclasta (em relação ao pop e vanguardismo) Wynton Marsalis, o maior e mais polêmico ícone do jazz das ultimas décadas. Ora, um encontro desses, deveras improvável como o foi, deveria ser noticiado em ao menos duas das grandes "web magazines" especializadas em jazz - ainda mais quando se leva em conta que a avant-pop The Bad Plus é uma banda que prega totalmente o contrário que o conservador Wynton Marsalis vem pregando desde o final dos anos 80, quando ele tomou a decisão de apregoar que o pop e hip hop eram prejudiciais à juventude americana e que o jazz deveria retomar o swing em busca da sua autenticidade perdida com as fusões e os experimentalismos das gerações passadas. O desfecho do "bate-papo", contudo, está no blog da própria banda The Bad Plus chamado DO THE MATH (the bad plus blog and webzine), onde Iverson mostra ser o mais assíduo blogueiro dentre os outros membros da banda, o contrabaixista Reid Anderson e o baterista Dave King.
Apesar do The Bad Plus já ter se declarado contra a "filosofia wyntoniana" em diversas ocasiões, Ethan Iverson não escondeu o entusiasmo quando perguntou sobre o jazz mais intenso e carregado que Wynton produzia nos anos 80 - dizendo apreciar essa fase com aquele grande quinteto e quarteto do trompetista - e, igualmente entusiasmado, esteve quando questionou sobre algumas das suas mega-composições como a "Knozz-moe-king" e alguns projetos de certos períodos de sua carreira, lembrando do legendário Wynton Marsalis Septet da década de 90. Ao ouvir um dos mais recentes lançamentos de Wynton, o excelente álbum Congo Square, e ao ter concluido a entrevista, Iverson iniciou a postagem no blog com o seguinte preview: Wynton Marsalis has had enough writers grill him endlessly about controversial topics. I treated this interview as an opportunity to learn about his current music, namely his most recent large-scale work, Congo Square, an unusually successful combination of conventional big band and the West African group Odadaa! led by Yacub Addy. Frankly, I came away enlightened, impressed, and motivated. I can now see how Wynton has obtained funding and respect for jazz at an unprecedented level: he is one of the most charismatic men I’ve ever met. Even before the interview, however, careful open-minded listening to Congo Square went a long way towards helping me understand Wynton’s contemporary artistry. While I grew up on early Wynton Marsalis albums, I haven’t paid much attention to Jazz at Lincoln Center since its inception. It was high time for me to check in and see what was really going on.
Sob os questionamentos de Iverson, Wynton Marsalis passou por um "blindfold test" (com várias faixas onde ele tinha que ouvir e descobrir quem estava tocando e a data do lançamento do respectivo registro: Iverson colocou faixas de Gillespie, Ellington, passou por Miles, Thad Jones, chegou em Woody Shaw até abordar sons mais vanguardistas; Wynton, por sua vez, descobria e expunha sua opinião e conhecimento sobre cada um dos músicos e sobre as respectivas sessões), também respondeu perguntas relacionadas aos seus prometedores e iniciais momentos de carreira marcado pelos improvisos intensos dos álbuns Black Codes, J Mood e Live at Blues Alley, bem como falou dos Young Lions, dos principais projetos da sua carreira, do seu polêmico modo de pensar em relação ao hip hop e, mais do que isso, foi insultado a responder perguntas sobre avant-garde e legendas vanguardistas - as quais ele sempre desprezou - como a AACM e seus músicos: George Lewis, Roscoe Mitchell, Kidd Jordan (que, como Wynton, também é uma figura de New Orleans), Anthony Braxton, Muhal Richard Abrams, dentre outros). Wynton, lógico, deixou bem claro o que ele pensa daquilo que chamam de "conservadorismo" e daquilo que chamam de "vanguardismo". Cínico e ousado, Ethan Iverson presenteou Wynton com o álbum Nonaah (1976/ 77, relançado em CD em 2008), de Roscoe Mitchell. Firme e inflexível, Wynton, que disse já ter conversado com George Lewis e lido seu livro A Power Stronger Than Itself: The AACM and American Experimental Music, apenas respondeu: "It’s improvised music. A lot of times they said it wasn’t jazz. They called it Creative Black Music. "Jazz" – for a name that nobody wants – there's been a lot of contest around it. I like the name of it. I like the music. I don’t have any problems with it. But it’s got to have a meaning. Everything can’t be it, if only because you can’t teach it to other people. That’s a very pragmatic way to look at it. If I take my kid out here and say, "Everything that you do is basketball," I can’t teach him how to play.
Sim! Aí está a protagonista das indagações: O que é Jazz ou o que deve ser rotulado "Jazz"? Ora, em se tratando dessa mesma indagação, a qual sempre rende calorosas discussões em canais da "grande mídia", cito a igualmente curiosa entrevista que Wynton Marsalis concedeu ao crítico Bill Milkowski na revista Jazz Times do mês de Março do ano de 2000, sendo a capa ilustrada por caricaturas do próprio Wynton e do vanguardista John Zorn. Neste número a revista Jazz Times estabeleu que, ao menos nas primeiras décadas do século 21, haveriam "futures conflict" entre Wynton e Zorn através das suas idéias díspares em torno dessa música chamada "Jazz" e do seu futuro neste novo século e milênio: cada um dos músicos concederam entrevistas respondendo questões relacionadas ao presente e futuro do gênero e, claro, expuseram suas opiniões sobre os estilos um do outro. A propósito, o trio The Bad Plus institue um linha de ecleticidade tão ousada quanto a linhagem ultra-vanguardista e ultra-eclética do genial John Zorn, apesar da heresia com que soam aos ouvidos dos críticos. O trio de Iverson prega que, assim como os antigos mestres do jazz usavam canções populares pra reproduzí-las em forma de jazz, é perfeitamente natural que eles façam releituras das canções de bandas do pop-rock como Bee Gees, Nirvana e Radiohead: é jazz da mesma forma. Wynton Marsalis, por sua vez, quer que essa música chamada "Jazz" soe um "jazz verdadeiro" ou um "verdadeiro jazz", bem como acha que a composição deve ter uma estrutura elaborada seguindo a evolução que começou com Duke Ellington e seguiu com Charles Mingus...se a música for improvisada, soar pop, ser estruturada como qualquer outra música e e não tiver swing, então qualquer música instrumental e improvisada poderia ser jazz. Foi o que ele indagou na entrevista com Iverson: "ora, man! Como posso ensinar basquete ao meu filho se eu disser que não há regras e que tudo pode ser basquete? Onde está o padrão do jogo? Onde estão as regras do jogo?...da mesma forma: como o jazz pode ser uma grande tradição musical se dissermos às gerações seguintes que toda música improvisada pode ser jazz? Qual será o significado da estética "Jazz" para esses músicos?
Conclusão: através das linhas de pensamento de cada uma dessas grandes entidades e suas respectivas repercursões, vemos que tanto o Wynton Marsalis, como o trio The Bad Pluas, bem como John Zorn colaboram cada um à seu modo com o futuro do jazz. Eles representam as extremidades das atuais e respectivas vertentes do jazz contemporâneo: o mainstream, o modern creative fundido ao pop e post-rock e, por fim, o avant-garde. O trio The Bad Plus, por exemplo, usa a ecleticidade como o seu carro-chefe ao fazer releituras diversas do pop e do rock, tentando reproduzir a mesma intenção que os jazzístas dos anos 30, 40 e 50 tiveram ao recriar as cações populares de Cole Porter e Frank Sinatra: o album mais recente For All I Care, com participações da cantora indie Wendy Lewis, é quase que totalmente pop. John Zorn, por sua vez, não gosta dos limites estéticos que o nome "Jazz" impõe ao gênero e acredita que a popularização do avant-garde, na sua forma mais livre e aberta ao uso de vários estilos musicais, é uma das metas para o futuro. Já Wynton Marsalis, de acordo com as declarações dos ultimos anos e das citadas entrevistas, acredita que o futuro do jazz consiste na adesão das novas gerações às estruturas elaboradas de composição e, consequentemente, no abandono da forma simples tema-improvisação-tema, além da insenssante busca pela autenticidade jazzística e suas formas de swing - lembrando que Wynton também prega - ou ao menos deseja - que no futuro haja uma vertente do jazz que resgate sua aproximação com a dança. Vai entender o Jazz!!!
Ethan Iverson Interview with Wynton Marsalis (part one)
Ethan Iverson Interview with Wynton Marsalis (part two)
4 comentários:
"...porque uma coisa é ler a informação do ponto de vista da crítica do jornal ou revista, outra coisa é ler a informação e opinião vinda do próprio site do músico."
Ótimo post esse o seu, Pitta, concordo muito com o que escreveu sobre a abordagem do jazz em seu próprio território.Quanto à citação que 'colei' acima, venho tirando certas conclusões sobre os críticos: de que eles são apenas pessoas e não 'deuses'.Abraço...
Há bons críticos, Fábio! E esses são aqueles que fazem um apanhado coerente de todo o cenário do jazz sem deixar se levar por paixões pessoais e engodos em torno de conceitos sobre "o que é jazz".
Mas há outros que enchergam apenas uma vertente como sendo a representante do "verdadeiro jazz" e, também, há outros que acham que toda música que usa improviso é jazz : é à esses críticos que não devemos dar ouvido, pois no primeiro caso ele limita demais a percepção do ouvinte, já no segundo caso ele expande tanto que até confunde!
Já os músicos em si...bem, todos eles tem suas incoerências e seus excessos: eu mesmo não gosto dos trabalhos do Wynton onde ele insiste em mostrar o velho estilo "new orleans" de forma retrô; tbm não gostei do estilo do The Bad Plus, sobretudo o ultimo disco que é bem pop; e John Zorn com Mike Patton é só barulho e gritaria...é um som pra alimentar conceitos...e eu não estou afim de conceitos...estou afim de música bem elaborada, bem composta e bem arranjada!
Valeu Fabio, por nos visitar sempre!
Eu tinha comprado a Jazztimes na época que saiu e Zorn é bem realista em relação ao possível crescimento do público de música mais diversificada. O próprio conceito de vanguarda já não é tão apropriado após metade do séc.XX, Zorn se encaixa mais no conceito pós-modernista e sua abordagem musical é iconoclasta. Em questão do Zorn, sempre houve polêmica, como muita gente acha que ele é um impostor. Basta averiguar o trabalho, não precisa ouvir tudo, pois ele é um artísta extremamente profílico, com a vida totalmente dedicada ao trabalho. Aliás há uma entrevista recente na Jazztimes, após um longo período de reclusão jornalísta, onde Zorn esclarece muito a este respeito.
Mas enfim, eu particularmente compartilho da mesma opinião de uma grande parte dos músicos, não ouço jazz, mas apenas música. Isso foi um rótulo vindo do jornalismo e indústria para situar um produto, quase todo mundo sabe disso.
Eu não me considero nem conservador e nem vanguardista e também concordo com Zorn: o termo avant-garde ou a música free é, atualmente, quase tão "maisntream" quanto o hard bop passou a ser a partir da década de 60. Eu me considero eclético dentro dos meus próprios limites e concepção do que é "música de qualidade". Acredito e defendo que cada música tenha seu rótulo, sua definição e sua denominação!
Acredito nisso porque tenho a certeza de que nenhuma criação divina ou humana existe ou coexiste sem nomes, títulos ou rótulos e, consequentemente, todas as criações do homem no ramo artístico sempre terá de ser enquadrada dentro de vertentes artísticas, padrões estéticos, características que limitam a criação dentro de um conceito artistico definível...o indefinível não vira tradição e não vinga como arte...não existe arte sem estética...não existe estéticas sem conceitos...não existem conceitos sem definições ou características que limitem suas respecticas criações: Jazz, por exemplo, é uma estética musical! Música Improvisada já é outra estética musical! Há co-relações entre as duas? Sim, Há! Mas também o jazz em seu início surgiu do ragtime que surgiu do modo como os negros tocavam as polcas e mazurcas européias e nem por isso os primeiros jazzístas diziam que tocavam música européia...precisou de um nome praquele novo estilo de fazer música: o mercado, o jornalismo (ou quem quer que seja) a rotulou de Jazz.
Assim como eu gosto de World Music ou Música Erudita, eu gosto dessas duas estéticas: Jazz e Música Improvisada! Pra mim, basta que eu sinta emoção e enchergue o real significado do conceito ou temática que uma composição de Jazz ou uma música improvisada possa dispor!
Os vanguardistas já falaram muito em "música livre" ou tocar com "liberdade": tipo, tocar de forma abstrata, improvisando uma torrente de notas sem bases harmônicas ou rítmicas. Se isso significar liberdade artística, então digo com franqueza que é uma liberdade que não proporciona música, mas apenas conceito...e se já existe um conceito então pra mim já não existe liberdade, pois se o "tocar livre" só significar tocar dessa maneira, então você estará enquadrado dentro de um padrão estabelecido que prediz a forma que vc tem que tocar pra se sentir livre. Aliás, pra mim essa liberdade nunca existiu, pois mais cedo ou mais tarde a mídia, o mercado ou o próprio artista terá que situar sua arte em um conceito em uma significação...e então aparecerá um rótulo para definí-la. Foi o que aconteceu com o Free Jazz, não foi?
Pra mim tocar livre é vc ter liberdade para tocar todos os estilos musicais que vc acha viável. Tocar livre é fazer como John Zorn: tocar musica judaica misturada com jazz, rock, psicodelia, free jazz, música erudita...sem se preocupar com a definição que suas criações irão receber. No entanto, mesmo assim ele terá que ser rotulado e enquadrado dentro de títulos, definições e vertentes. É a condição humana de todo artista: ser rotulado!
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